Autor: Samuel Rawet
Editora: Ediouro
Ano: 1982
Páginas:108
“Calou. E mais do que isso, emudeceu.”
Samuel Rawet
A figura do estrangeiro é uma das mais recorrentes na literatura. Desde a Grécia Antiga com Ulisses, da Odisseia de Homero, que atravessa os mares para tentar voltar para casa, até a modernidade de Albert Camus em que o estrangeiro parece ser incorporado à subjetividade do indivíduo moderno. Se formos pensar na questão na língua portuguesa, temos Álvaro de Campos em Lisbon Revisited que se vê “estrangeiro aqui como em toda parte” ou, em termos de nação, em Labirinto, onde afirma que “minha pátria é onde não estou”. A questão da língua, a propósito parece ser algo relevante pro assunto desde que Kafka, como aponta Deleuze, aposta em usar uma “literatura menor” da língua alemã judia da periferia de um bairro da República Tcheca, até o dramaturgo Samuel Beckett que, irlandês, optava por não escrever em sua língua natal para escrever em francês que tinha menos familiaridade, pois essa dificuldade da língua viraria, também, desencadear em uma dificuldade frente as formas literárias. Faço esta introdução para falar trazer um “estrangeiro” que antecipa a pós-moderidade brasileira, Samuel Rawet, escritor brasileiro, nascido na Polônia que, em Contos do Imigrante, encara a questão da língua e da figura estrangeira que está apartada de sua terra local, em meio a um país turbilhão de culturas como o nosso, para tentar traduzir este sentimento tão difícil de capturar: o de não pertencimento.
Contos do Imigrante, de Samuel Rawet, é o livro e estreia do autor, publicado em 1956. Trata-se de uma reunião de contos cujo tema principal é a figura do imigrante, aquele que abandona sua terra e ruma para outra fronteira, país ou continente, em geral, por motivos políticos de guerra ou em busca de melhores condições de vida, e se vê diante uma outra cultura e outra língua. Além disso, Rawet transpõe este sentimento de “ser imigrante” também para outras instâncias dos sujeitos, como se fosse uma categoria mais próxima da apontada por Álvaro de Campos: assim, os imigrantes são, também, as pessoas a beira da morte, os caminhantes solitários das ruas e os marginalizados em geral.
“Os silêncios que se sucediam ao questionário sobre si mesmo, sobre o que e mais terrível experimentara. Esquecer o acontecido, nunca. Mas como amesquinhá-lo, tirar-lhe a essência do horror ante uma mesa bem-posta, ou um chá tomado entre finas almofadas e macias poltronas?”
Um ponto interessante de se destacar é uma barreira de silêncio que se interpõe em suas figuras. Como se a língua lhes fosse um labirinto, o que se tem é uma espécie de mergulho sinestésico nas sensações sem que as palavras consigam traduzi-las, dando uma impressão profunda de que, mais do que o deslocamento da língua e da terra, o que se perde quando se emigra é, de alguma maneira, uma relação com o corpo, com os sentidos. O que se vê, no fim das contas, são figuras afogadas diante os próprios gestos, que não sabem como fazê-los ou traduzi-los para este novo contexto, este novo lugar que ainda não é lar. Não é incomum, por exemplo, o cerne dos contos do imigrante estar justamente nestes abismos de silêncio, como no conto Profeta ou Gringuinho, os mais conhecidos do livro.
No conto Judith (o meu preferido de toda obra), vemos uma senhora que mora em uma espécie de cortiço e, diariamente, ouve troças dos meninos do lugar vendo, inclusive, pedras serem arremessadas próximas a si. Com seu corpo e cultura vetados ao entendimento da infância, como também das figuras adultas embrutecidas pelas poucas palavras, Judith só havia falado uma vez para pedir fogo: queria acender um cigarro. Isto, de alguma maneira, cria, ao mesmo tempo, repulsa e curiosidade em todos. Até que um dia, ouve-se gritos e prantos da mulher e, reunidos, todos os moradores da localidade, curiosos/ansiosos, invadem sua pequena casa e dão de cara com a senhora em plena oração a chorar por sua terra, seus familiares, seu passado perdido. Trata-se de uma das imagens mais fortes da literatura e que significam muito: a invasão da casa, a invasão do corpo, a invasão da memória, de um lado, e de outro, a perda da casa, a perda do corpo, a luta para que não se perca a memória.
“Teria a noite dentro de sua noite, como quem sonha que está sonhando.”
Dois pontos que se destacam nas leituras de Rawet é, por um aspecto, uma ligação com a religião e a cultura judaica (coisa que ele vem a romper no futuro, tendo a vida toda uma relação complexa com sua própria cultura) e, de outro, seu afastamento de “ideologias” mais marcadas de sua época. Em relação ao judaísmo, parece ser uma leitura um tanto dura para pensar o exílio, como se tentasse recuperar no autor uma literatura de um “paraíso perdido”, remetendo a um judaísmo clássico que teria “vivido uma pós-modernidade antecipada”. Sobre a falta de ideologia, me parece, é um desdobramento da primeira: ao optar pelas figuras solitárias, em sua errância pela cidade, marginalizadas, Rawet escolhe um caminho que não o da esquerda tradicional. Isto tem consequências em como vão ler suas obras, ou seja, seu livro passa a ser lido de forma enviesada por esse aspecto: o indivíduo silencioso que não é capaz de se coletivizar, de dar voz às suas questões. Isto tem desdobramentos, inclusive, a esta visão que busca origens mais distantes para as questões essencialmente contemporâneas que estão materialmente latentes na obra, como o próprio judaísmo (o judaísmo está presente porque ele é judeu, mas sua literatura, nem por isso, mais “judaica” menos “brasileira”). Temos uma crítica que lê Rawet através dos subterfúgios de sua própria fragilidade e pouco encaram a obra em si.
Sobre seu papel na literatura nacional e em nossa língua, Rawet diz em entrevista chamada Andanças e mudanças de S. Rawet: “Sou fundamentalmente suburbano. O subúrbio está muito ligado a mim. Aprendi português nas ruas, apanhando e falando errado e acho essa a melhor pedagogia. Eu aprendi tudo nas ruas”. Um ponto relevante para deslocá-lo deste lugar de uma literatura mais engajada: sua marginalidade vem tanto do subúrbio quanto da língua: “Escrevo em português, no Brasil. Não domino bem a língua, ainda. E dominá-la não é ser fiel a preceitos gramaticais. É manifestar espontaneamente o miolo da língua, suas raízes populares, na gênese simultânea de idéia e emoção da consciência.”
Entrei em contato com a literatura de Samuel Rawet por conta do escritor piauiense Assis Brasil, para quem Rawet configura um marco na literatura nacional depois do modernismo, ao lado de Guimarães Rosa. Assis destaca, principalmente, uma escrita que renovaria a forma do conto abrindo espaço, inclusive, para uma nova leitura das narrativas curtas de Machado de Assis. A verdade é que, pouco afeito à sequência narrativa de sua escrita, Rawet incorpora no conto uma espécie de processo às próprias personagens, assim as temporalidades se esbarram, tal como nas memórias, e se afastam do presente para um presente mais urgente: o de dentro, assim como é, também, atropelada pelos cheiros, gestos e movimentos da natureza e o espaço urbano.
Samuel Rawet, ainda na década de 50 no Brasil, faz uma literatura marginal das mais radicais de nossa história da literatura, mas justamente por se marginalizar como escrita, como procedimento político e literário e como meio de vida, é mais um que passa sempre as margens dos manuais e das grandes edições, editoras e homenagens. Creio eu que toda boa literatura é assim.
Leia também as melhores frases da obra aqui!