Dia 13 de setembro estreou no Galpão do Grupo Tapa o espetáculo “Duas Máscaras Nuas”, uma adaptação de dois textos de Luigi Pirandello, grande dramaturgo italiano: Cecé e O Homem com a Flor na Boca que nos mostram duas facetas desse autor e nos leva do riso despretensioso a mais profunda reflexão.
A trama que envolve Cecé, ou para os não íntimos: César Gazoli, é verdadeiramente intrigante, pois exemplifica a astúcia e a habilidade manipuladora de um personagem que se vale de seu charme e inteligência para escapar de uma situação financeira da qual se colocou. A engenhosidade com que ele concebe um plano para ludibriar o Comendador Squatriglia e solucionar sua situação econômica sem comprometer sua relação de interesse com uma jovem bonita, demonstram a sua capacidade de pensar de forma rápida e encontrar soluções criativas. Cecé seria, para nós brasileiros, a imagem do malandro, aquele que sempre nos convence e se livra das situações mais inusitadas.

Como toda boa dramaturgia, a história escrita no início do século passado ainda se faz presente nos dias atuais, o que a torna atemporal e universal. Pirandello usa do humor para revelar uma grande crítica social: quem somos nas relações de poder? Somos César, o manipulador que usa de artimanhas para se manter na sociedade? Somos Comendador, que se coloca em uma situação comprometedora para aparentar uma imagem de persona grata e solícita? Ou a Mulher, que sai do status de vítima e passa a jogar o mesmo jogo que Cecé quando a convém? É certo que, como pessoas declaradamente morais, nunca admitiremos tais condutas, mas é possível que ao longo de uma vida sejamos um pouco dos três personagens que nos foram apresentados, em maior ou menor escala, não importa, estaremos sempre sujeitos a encontramos ou nos tornarmos César.

Já em O Homem com a Flor na Boca temos um drama conciso e profundo, o enredo se centra em uma conversa entre um homem desconhecido que perdeu o trem e precisará passar a noite em um bar perto da estação, e um senhor acometido por uma doença terminal: epitelioma labial, um dos nomes técnicos do câncer.
A “flor” mencionada no título é uma metáfora para a enfermidade que assola o protagonista. Conforme a conversa evolui, ali na mesa de um bar, temas banais se transformam em questões existenciais profundas, a doença faz com que o seu hospedeiro, consciente da brevidade de sua vida, crie uma visão de mundo poeticamente triste e significativamente intensa. E, se agarrando à observação das pequenas coisas, os atos cotidianos da vida alheia, escapa do fantasma da morte dando de presente a nós espectadores uma acentuada sondagem do Eu e do Outro. O que era um momento despretensioso entre dois estranhos, logo se torna uma grande reflexão acerca da existência e nós enquanto platéia vamos descobrindo juntos com o homem que perdeu o trem, às diversas camadas do homem doente. Somos também personagens ouvintes daquela história, cúmplices daquele encontro fruto do acaso.

E, como se já não bastasse a notável habilidade de Pirandello em criar enredos complexos e intrigantes, essa montagem, dirigida com maestria por Eduardo Tolentino, se destaca por sua excelência técnica e artística. O espaço do galpão do Grupo Tapa é habilmente aproveitado, em Cecé, as trocas de cenas, entradas e saídas dos personagens, se tornam momentos de grande efeito dramático, permitindo que nós nos sintamos submersos na cena. A escolha da luz geral, para os leigos, uma luz que ilumina todo o espaço, confere uma sensação de verossimilhança e realismo à peça. É perceptível que todos os elementos cênicos foram cuidadosamente planejados para funcionar em harmonia, respeitando o princípio teatral de que: “tudo que está em cena deve ter uma funcionalidade”.
O tempo de comédia é certeiro, com destaque para a interpretação de André Garolli no papel de Cecé, complementada pela presença de Norival Rizzo. A beleza da peça fica com atuação de Antoniela Canto, que traz graça e competência para o palco.
Mas é, sem dúvidas, em “O Homem com a Flor na Boca” ‘ que somos transportados para uma experiência singular e inesquecível. O arco construído pelos personagens nos impressiona assustadoramente, e a atuação de Norival Rizzo é um verdadeiro tour de force, preenchendo a sala com sua potência artística. Seus movimentos são partituras cheias de uma sensibilidade e delicadeza que nos permitem visualizar com clareza a intencionalidade do texto, enquanto sua voz nos surpreende com a capacidade de evocar imagens vívidas. As pausas e respirações estão perfeitamente colocadas, é, sem dúvidas, uma verdadeira aula de excelência em atuação. Até mesmo os “imprevistos” – como o som dos trens passando pela Barra Funda – se integram perfeitamente à realidade da peça, criando uma sensação de imersão tão intensa que nos faz sentir como se estivéssemos ali, no bar, esperando o próximo trem, junto aos personagens.

Tolentino nos aproxima (mais uma vez) de um clássico, executando-o com habilidade, saiba: É impossível sair imune a essa experiência!
A peça “Máscaras Nuas” fica em cartaz até 12 de outubro, não perca.

