Em 1993, Octavia Butler publicou A Parábola do Semeador, livro de ficção especulativa que reinventava o mundo sob o apocalipse provocado pelas condições climáticas. A história acompanha Lauren Olamina, uma jovem negra filha de um pastor, e sua viagem ao norte para espalhar a mensagem de que “Deus é Mudança”. Esse contexto é apresentado por Fátima (Tricka Carvalho) logo no início de Fuga, espetáculo que passou pelo Sesc Belenzinho, em São Paulo.
Fátima é a educadora responsável por guiar o público pelo Museu imaginário onde a montagem acontece. No entanto, a bela cenografia criada por Maíra Sciuto não mimetiza os museus. Ao contrário, a sensação é de entrarmos em um bunker.

Além dos elementos simbólicos, será a iminência do fim do mundo que sustentará a trama de Fuga: durante uma tempestade que paralisa a cidade de São Paulo, quatro mulheres dividem tal situação-limite por meio do trabalho. Jennifer Souza interpreta uma repórter que vai informar sobre o caos urbano. Dentro do museu, Joy Catharina e Tricka Carvalho vivem a rotina da instituição, ignorando, até certo ponto, as consequências da chuva. E Julia Pedreira é a bombeira que tenta atravessar a cidade para chegar ao Museu.
“Gole Rebolado”espetáculo dirigido por Hamilton Vaz Pereira discute a origem do teatro para pensar existência
Dirigida por Beatriz Barros, Fuga tensiona diversos elementos ao mesmo tempo, como o mito da Medusa, a evocação de Oxum, a queda do meteorito Bendegó, encontrado em solo brasileiro e conservado no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e a exaustão da carga de trabalho sob a ótica feminina. Tudo isso provoca uma espécie de “tempestade dramatúrgica” em cena. Mas a investigação não cede à loucura. As mudanças climáticas, especialmente tudo aquilo que envolve o símbolo da água, introduzidas como estratagema por meio do livro de Octavia Butler, embalam a encenação.
Inclusive, por A Parábola do Semeador trabalhar a religiosidade, não deixa de ser curioso o “teor cristão” do apocalipse que vemos em Fuga. O dilúvio foi a grande crise climática da Bíblia e Noé deveria construir uma enorme arca, salvar casais de animais e esperar até o mundo ser completamente dizimado pela água. Tal lavagem feita por Deus visava a renovação da própria humanidade. “Deus é Mudança”, acreditava Lauren Olamina, personagem da obra que irriga o espetáculo. Assim, se a primeira crise climática veio na forma de dilúvio, a segunda, conforme a bíblia, será o fogo, o aquecimento e as cinzas. Em tempos de ascensão religiosa negacionista cada vez mais forte, haveria quem conseguiria acreditar (ou recusar) uma ordem divina feita desse tamanho?

A partir dessa visão, Beatriz Barros substitui a arca pelo museu, ou seja, por aquilo que retém o passado para semear o futuro. O design de som, juntamente com o trabalho de movimentação corporal das atrizes, atuando, em alguns momentos como criaturas, remontam a cronologia dessa crise. Em um dos momentos mais emblemáticos do espetáculo, quando o próprio meteorito Bendegó ganha voz, percebemos que o apocalipse também pode ser gênese, pois a sua composição química guarda o conhecimento que pode “ser a mudança”.
Mais do que armazenar informações, a história, a arte, a ciência e a civilização contidas no tal bloco celestial precisam ser contadas continuamente para resistirmos aos diversos dilúvios em curso. Ao colocar duas trabalhadoras como as guardiãs do espaço, uma repórter que parece falar sozinha sobre as consequências climáticas e uma bombeira – a responsável por cuidar do meteorito – como protagonistas, os símbolos destacados anteriormente convergem para o mesmo campo: “Fugir, às vezes, não é escapar, mas recusar”, como escreve Jennifer Souza, que também atua como assistente de direção, porque para a gente comum não há escapatória.
Nos tempos atuais, diante de tantas opções de “mergulho” (ou afogamento) na forma de entretenimento, ideais e oportunidades de trabalho, recusá-las é um ato revolucionário. E, não por acaso, o próprio fazer teatral é um tipo de recusa à pressa neoliberal, à funcionalização humana e à torrente de informações despejadas em nós todos os dias.
A morte de Ofélia, personagem de Shakespeare que morre afogada em Hamlet, soma-se à trama de Fuga, mas recusa a textura óbvia da realçar a fragilidade das mulheres em cena. As artistas fragmentam-se em imagens. Um exemplo? Quando Medusa é morta por Perseu, do seu corpo nasce Pégaso, o cavalo alado. Contudo, é a imagem do cavalo Caramelo sob o telhado, recusando-se a ceder à enchente no Rio Grande do Sul, que é exibida como parte da “coleção” do Museu onde a peça acontece. Quais artefatos contarão a história para quem sobreviver? O teatro, a filosofia, a arte e a política ainda servirão de terra firme diante de tantas inundações? As personagens-deusas do espetáculo não podem dizer quais são as “ideias para adiar o fim do mundo”. Cabem a elas apenas impôr urgência em nossa crise.
Pode ser que o diálogo entre teatro e realidade, mito e descrença apresentado em Fuga seja cifrado em alguns de seus momentos. Ainda assim, a mensagem vai ser semeada porque as poesias visuais da dramaturgia de Louise Belmonte não querem mostrar a saída de emergência, e sim recusar a espera desse “dilúvio” como a única saída.
Ficha técnica
Idealização: Beatriz Barros e Jennifer Souza
Encenação e Direção geral: Beatriz Barros
Assistência de Direção: Jennifer Souza
Dramaturgia: Louise Belmonte
Colaboração dramatúrgica: Jennifer Souza, Julia Pedreira, Joy Catharina, Tricka Carvalho e Beatriz Barros
Elenco: Jennifer Souza, Julia Pedreira, Joy Catharina e Tricka Carvalho
Direção Musical e Trilha Sonora Original: Lua Oliveira
Direção de Movimento e Preparação Corporal: Castilho
Cenografia: Maíra Sciuto
Assistente de Cenografia: Matheus Muniz
Cenotécnico: Alicio Silva
Figurino: Ayomi Domenica
Costureiro: Jonhy Karlo
Assistente de figurino: Regina Torres
Videografia: Gabriela Miranda
Desenho e Operação de Luz: Matheus Brant
Operação de Luz e Vídeo: Matheus Espessoto
Operação de Som: Caike Souza
Fotografia: Duda Portella
Assessoria de Imprensa: Canal Aberto
Produção: Corpo Rastreado | Jack Santos, Beatriz Barros e Jennifer Souza

