Em algum momento de “Nora e a Porta”, espetáculo em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo, o elenco abandona os personagens e questiona: qual a razão de se fazer uma releitura de um texto clássico em 2025?
Com dramaturgia de Marina Corazza, a peça conversa com “Casa de Bonecas”, de Henrik Ibsen, um dos dramaturgos mais influentes do teatro. Na obra do autor, Nora é uma mulher encurralada pelo casamento, filhos e um status fantasmagórico da vida perfeita. À época da encenação, em 1879, o texto foi revolucionário, já que pouco a pouco a protagonista se dá conta da condição e foge, deixando tudo para trás.
Se mais de cem anos depois ver as mulheres atravessando barreiras sociais, culturais e políticas segue como insurgência, há um “quê” brechtiano em expor a coxia. Esse conceito teatral provoca um estranhamento na plateia, colocando-a como engrenagem da ação dramática para o espectador refletir sobre o tema em questão. Só que em “Nora e a Porta”, a hábil direção de Sandra Corveloni e a co-direção de Maristela Chelala, usam tal distanciamento de modo dúbio: a própria arte de representar parece acuada.

Por trás de tantas paredes, a representatividade não tem se imposto à representação? Por exemplo, a posição política de um artista, em quem ele votou nas últimas eleições, o classifica para estar em cena, ou alguns atuam só para reforçar sua ideologia? O que move a releitura (ou o julgamento) de um texto escrito em outro tempo?
Repare em como a celebração – somente mencionada no texto de Ibsen – ganha estatura em “Nora e a Porta” ao se transformar em uma festa à fantasia. Heitor Goldflus, interpretando um agiota e emulando “Laranja Mecânica”, consegue o feito de ser tão canalha e ameaçador quanto Alex DeLarge. Por sua vez, André Garolli, fantasiado de Superman, em analogia genial à fraqueza masculina, na verdade, veste um tipo fundamentalmente contemporâneo, torto, que agora não tem vergonha de dizer o que pensa em qualquer almoço de família.
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Por isso, a festa é usada como lugar em que a representação elitista, as máscaras sociais e toda a hipocrisia daqueles que habitam o imaginário brasileiro serão expostos. Nada e nem ninguém deve ser poupado.
A cenografia crua de Anne Cerutti, junto da forte iluminação de Gabriele Souza, vão ao encontro tanto do vazio do espaço teatral propriamente dito, quanto daquele relacionado ao interior do ator, ideias de Peter Brook, importante diretor, que dizia: “para se ter teatro, basta apenas existir um espaço vazio, alguém transitar por ele e alguém observar”. Tal “vazio” pode ampliar a encenação, já que impõe aos artistas a necessidade de levar a plateia a outra dimensão, a sair do espaço cênico e se ver como convidado da festa. E aí que a encenação se abre: tudo pode ser representado. O trabalho do ator é justamente mentir, inventar, criar imagens absurdas e perigosas. Nessa era digitalizada em que todos nós temos “duplos”, o público é que precisa prestar contas de si.

Na segunda parte, uma “convulsão” vai povoar os “espaços vazios”. Adriana Mendonça e Rita Pisano se destacam e o espetáculo, em vez de retratar a coragem de ir, tenta iluminar a podridão do quê – e de quem – fica para trás, colocando lealdade, corrupção, a opressão, o sistema de classes e até o próprio fazer artístico de um lado só. Então, isso é representar, retratar, simbolizar, caracterizar, estar no lugar de alguém, substituir uma pessoa e fazer o papel que lhe incumbe?
Em “Nora e a Porta”, a via de acesso parece estar em segundo plano e quem entra importa tanto como quem sai. São as chaves à mostra que mudam o rumo.
Ficha técnica:
Dramaturgia: Marina Corazza
Direção: Sandra Corveloni e Maristela Chelala
Elenco: Adriana Mendonça, Anderson Negreiro, André Garolli, Carlos de Niggro, Heitor Goldflus e Rita Pisano
Iluminação: Gabriele Souza
Cenografia e Figurino: Anne Cerutti
Assistente de Figurino : Luiza Spolti
Trilha Sonora: Rafael Thomazini
Operação de Luz: Paloma Dantas
Operação de Som: Rafael Thomazini
Coordenação de Produção: Mosaico Produções
Produção Executiva: Cicero de Andrade
Assistente de Produção: Dani Simonassi
Assessoria de Imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira
Jurídica: Thiago Oliveira
Contábil: Tuty e Lyla
Fotografia: Angélica Prieto
Designer Gráfico: Fepa Teixeira