“O Homem do Saco” (título original: “Bagman”) é uma das primeiras adições ao gênero de terror do ano, e o faz de maneira bastante interessante ao explorar medos adultos através de uma criatura infantil. Sob a direção de Colm McCarthy, conhecido por sua habilidade em criar narrativas tensas e atmosferas marcantes (“Peaky Blinders” e “The Girl with All the Gifts”), o filme traz uma abordagem original para um dos mitos mais universais: a figura sombria do “homem do saco”, que aterroriza crianças há gerações.
Uma história enraizada nas ansiedades da paternidade – e na história real de seu escritor:
A trama de “O Homem do Saco” segue Patrick McKee (Sam Claflin), um homem que retorna à sua cidade natal depois de muitos anos afastado. Quando pequeno, durante uma breve incursão com seu irmão Liam às proximidades de uma mina de cobre abandonada, o adolescente Patrick se aproximou demais e teve uma mecha de cabelo cortada pelo Homem do Saco, uma figura mitológica associada ao desaparecimento de crianças que o atormentava. Anos mais tarde, acompanhado de sua esposa, Karina (Antonia Thomas), e de seu filho pequeno, Jake (Caréll Vincent Rhoden), Patrick busca um recomeço em meio às memórias sombrias de sua infância. No entanto, o que deveria ser uma nova fase rapidamente se transforma em um pesadelo quando Patrick começa a perceber sinais de que o “Homem do Saco” – pode ser mais real do que ele imaginava.
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A história é uma extrapolação sobrenatural de uma história real, e é, portanto, quase biográfica em certos sentidos: é fruto do roteiro de John Hulme e tem origem em memórias reais do escritor, que se baseou em pesadelos recorrentes que o assombravam quando ele tinha apenas seis anos para construir sua trama. Hulme conseguiu se livrar de suas aterrorizantes visões com a ajuda de um psicólogo infantil. Quando seu filho Jack nasceu, porém – a similaridade dos nomes não é nem um pouco acidental -, seus pesadelos retornaram com mais força que nunca, cada vez mais insistentes e concretas. Hulme relata ter passado a imaginar uma presença ameaçadora e misteriosa rondando seu filho, ameaçando sua segurança, ansiosa para abrir seu saco e aprisionar a criança dentro dele.
O Homem do Saco na mitologia:
O “Homem do Saco” é uma figura que transcende fronteiras; ele aparece em diferentes formatos em mitos europeus, asiáticos e até mesmo nas histórias contadas no Brasil. McCarthy utiliza essa familiaridade universal para criar um terror que é tanto psicológico quanto palpável, explorando os medos enraizados na infância e no instinto de proteção paternal.
O homem do saco, enquanto entidade mitológica, é o horror arquetípico do medo infantil. Historicamente associado a um tipo de bicho-papão, ele é, essencialmente, a criatura que toda criança – e muitos adultos – acreditam ver ou, no mínimo, sentir na escuridão, nos cantos da casa durante a noite, debaixo da cama. Ele é a representação da sensação universal que leva muitas pessoas, crianças ou adultas, a correrem depois de apagar a luz, não gostarem de deixar os pés para fora do lençol de noite, ou terem medo de irem ao quintal durante a noite. Essa ansiedade, esse medo tão comum, tolo, mas generalizado, se transformou de uma maneira ou outra em diversas figuras mitológicas presentes em todas as culturas, pois é universal, simples e eterno.
Ele tem várias encarnações: em países anglófonos, é por vezes o Boogeyman; na Espanha, El Kuko; na Rússia, Babay; na Itália, L’uomo Nero; na Bulgária, Torbaian; na Argélia, H’awouahoua; na França, Le Croque-Mitaine; no Haiti, Ton Ton Macoute; no Brasil, pode ser o bicho-papão ou o homem do saco preto. Todas essas lendas, apesar de conterem certas diferenças culturais entre si, têm em comum uma narrativa geral: a figura central de um homem-monstro que rapta crianças (muitas vezes incluindo a figura do saco) e as devora.
A simplicidade pueril dessa criatura é o que a torna tão efetiva. Um ser como esse, que não tem nenhuma explicação ou mitologia complexa por trás, nada que o humanize, é simplesmente maldade pura, uma criatura sinistra com a qual não há possibilidade de diálogo ou negócio. Tão conspícuo quanto o Papai Noel ou a Fada do Dente, mas ainda mais vago e, portanto, mais universal e assustador, ele não é limitado por tempo ou por espaço, não tem características que o definem e, por excelência, funciona tão bem no contexto da Idade Média quanto da Era Vitoriana, e continua efetivo hoje. É, enfim, um vilão que aterroriza crianças – e ainda gera, inconscientemente, certa ansiedade em vários adultos – por condensar em si os elementos mais básicos, profundos e viscerais do Mal sobrenatural.
O Homem do Saco no filme de McCarthy:
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No universo do filme, o Homem do Saco é uma entidade monstruosa e maligna, que tomou como morada uma antiga mina de cobre desativada. Apesar de sua aparência peculiar – quase uma boneca de pano – o monstro é caracterizado como uma criatura assustadora, que respira com dificuldade, se move lenta e enervantemente – o ator que o interpreta, Will Davis, é um acrobata, e os movimentos do monstro são como os de uma aranha tarântula -, se alimenta de angústia, caça durante a noite, buscando suas presas na escuridão, abre brechas, infiltra-se por elas e ataca. Suas vítimas, uma vez marcadas, não têm escapatória: estão condenadas a, eventualmente, acabarem dentro de seu saco de pele e serem, finalmente, devoradas.
Quando Patrick se aventura em seu covil, o monstro surge de um vão na parede. Seu ambiente ajuda a reforçar a aparência de terror: um lugar lúgubre e abandonado, iluminado por pequenas tochas e repleto de cestos onde ele guarda brinquedos roubados das crianças que atormente e, eventualmente, devora. É nesse espaço que exerce sua violência contra as crianças – lá, ele tem domínio total, e a caverna lhe concede controle sobre as circunstâncias e o permite ter poder completo sobre suas vítimas. Tudo isso tem uma função: a de caracterizar o monstro como um sequestrador.
Medos adultos em histórias infantis: O homem do saco como representação do sequestro
A função das figuras mitológicas e folclóricas, historicamente, é de ensinar algo. Isso é particularmente verdadeiro no que diz respeito às figuras de horror – já que a história de terror, independentemente de ser voltada para crianças ou adultos, tem como função, sempre, dar um aviso. A figura do Bicho Papão / Homem do Saco é interessantemente reminiscente de um medo universal, atemporal e muito comum de pais ao redor do mundo e ao longo da história: o sequestro de seus filhos. Não é à toa que o monstro normalmente sirva como aviso para que os pequenos obedeçam aos pais. Também não é por acaso que ela, em várias versões de sua história, carregue um saco. Simbolicamente, o monstro está ensinando as crianças a temerem estranhos que tenham a capacidade de prendê-los e levá-los para longe. As crianças, assim, ficam com medo de serem tiradas de seus pais. O que torna o filme interessante, porém, é a escolha de subverter o ponto de vista e falar do medo que os pais sentem de terem seus filhos tirados deles.
![Bagman' Unleashes a Malevolent, Mythical Creature in Theaters This September [Trailer] - Bloody Disgusting](https://i0.wp.com/bloody-disgusting.com/wp-content/uploads/2024/07/bagman-movie.jpg?fit=1359%2C773&ssl=1)
O Bicho Papão parece uma figura insólita para um filme de terror sério, sobretudo nos dias de hoje. É difícil imaginar um adulto que ainda tenha medo de uma criatura tão conspícua e simples, relegada a contos infantis. Entretanto, o filme funciona; consegue isso pois entende o que muitos filmes de terror da atualidade falham em compreender: que o mundo moderno já não se presta a sentir verdadeiro pavor de monstros.
Essa é uma realidade histórica que vem se tornando cada vez mais visível desde o advento da primeira Revolução Industrial. A audiência não é mais aterrorizada pelo monstruoso e pelo sobrenatural – não da mesma maneira. Muito das velhas superstições do passado, por mais efetivas e brilhantes que sejam enquanto contos infantis, têm um jeito infeliz de parecerem flácidas e sem vida sob o escrutínio da atualidade.
Poderia facilmente ter sido esse o caso, mas não foi, pois a produção compreende que o que deve causar pânico aqui não é o próprio monstro, mas sim a ideia que ele representa. A capacidade do Homem do Saco de servir como figura de terror em um filme para adultos – dada sua longa história como monstro de histórias de dormir para crianças – se dá pelo fato de o medo explorado ser não necessariamente o medo do sobrenatural, mas uma ansiedade extremamente real e presente na vida de qualquer pai ou mãe: o medo de ter seu filho levado embora, sequestrado, morto. É isso que causa os arrepios, gera pavor, gela a espinha.
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O Homem do Saco de Hulme é uma representação alegórica aos terrores dos pais a respeito da segurança de seus filhos. A paternidade (ou maternidade) é uma condição delicada, complexa e por vezes contraditória, que traz consigo imensa felicidade, mas também inúmeras preocupações e ansiedades proporcionais. A responsabilidade de cuidar de e manter vivo um filho tem seus próprios fardos que intensificam medos atávicos, ancestrais e, por vezes, irracionais do desconhecido e também do conhecido. São instintos biológicos mais fortes do que o racional, e medos e ansiedades viscerais com frequência ultrapassam o intelectual.
Todos esses temores e nervosismos reunidos são o que o filme O Homem do Saco de fato explora. A história é muito simples – um pai que tem medos irracionais a respeito da segurança de seu filho – mas com um óbvio desvio: no caso específico, seus medos acabam por ser bem menos irracionais do que se esperaria. De acordo com o diretor Colm McCarthy, “os filmes de terror muitas vezes são mais eficazes quando se baseiam em um aspecto sombrio da condição humana. […] A verdade é que a melhor coisa que se pode fazer como ser humano, na minha experiência, é ter filhos. Eu tenho dois, amo-os loucamente, são a melhor parte da minha vida. E o maior medo que se pode ter é de que algo aconteça com eles. Esse medo é primitivo e fundamental, é o cerne da condição humana.”
Isso é refletido nas opiniões dos criadores do filme. Hulme diz que “O Homem do Saco é um monstro cruel e sente prazer em fazer mal às crianças, pois isso o satisfaz”, enquanto o diretor de fotografia, Nick Remy Matthews, o descreve como “Um ser que coleta pedaços de sonhos descartados. […] Uma espécie de antítese folclórica do Papai Noel: em vez de dar presentes, ele os toma – especialmente aqueles que carregam o apego sentimental de seus donos, destruindo assim suas defesas emocionais.” Suas técnicas de rapto são insidiosas e assustadoramente reminiscentes da realidade de um predador que vai atrás de crianças na vida real, focadas no desgaste psicológico: ele provoca, dá apenas vislumbres de sua presença, e não ataca imediatamente. Atrai suas vítimas com uma forma atraente – a de uma boneca – e, então, se revela quando já é tarde demais.
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De acordo com Will Davis, o Homem do Saco “representa aqueles monstros que nos aterrorizam na infância. Ele vem atrás de você, e nunca fica totalmente claro o que ele pretende, mas você sabe que é algo horrível. Ele vai colocá-lo dentro de seu saco e levá-lo embora. Nunca se descobre o que realmente acontece com essas crianças, o que ele faz com elas. O mistério é o que o torna verdadeiramente assustador.”
Essa ideia mais uma vez ecoa muito bem com a temática geral de sequestros e desaparecimentos de crianças – o pior pavor de muitos pais é a incerteza. Familiares de crianças desaparecidas continuam por anos procurando seus corpos e com frequência sentenciam que prefeririam saber que a criança tinha sido morta do que continuar sem saber o que aconteceu. É a falta de qualquer certeza que devora esses pais e familiares. É o desconhecido, enfim, que aterroriza crianças – que têm medo do escuro e de monstros vagos que farão algo terrível e não muito bem explicado contra elas – e adultos – que não sabem o que aconteceu, ou o que pode acontecer, com seus filhos. E é esse desconhecido, em ambas as dimensões, que o homem do saco representa.