Mariana Enriquez e o terror vindo dos homens no épico “Nossa parte de noite”

Tendo como pano de fundo a Argentina dos anos 80 e 90 do século XX, mas também voltando à Londres psicodélica dos anos 60 e 70, “Nossa parte de noite”, de Mariana Enriquez, com tradução de Elisa Menezes e publicado pela Intrínseca, é um livro perturbador, tenso e que, aos poucos, nos envolve em um submundo de escuridão e disputas por poder. 

Dividido em partes que não seguem necessariamente uma ordem cronológica, mas se conectam por meio de elos-chave, a narrativa começa como um Road Movie. Juan e Gaspar, pai e filho, vão de carro de Buenos Aires até Misiones, província onde ficam as famosas Cataratas do lado argentino da fronteira e reduto dos Bradford, a rica e influente família de Rosario, mãe do menino, morta sob circunstâncias suspeitas. 

É uma viagem obscura, sob o peso do luto e da insegurança, pois, além dos militares (a Ditadura na Argentina durou de 1976 a 1983), eles precisavam se esquivar também da família que buscava tomar o que considerava legitimamente seu. No caso, eles desejavam uma herança perturbadora, uma conexão com a Escuridão, um poder sombrio que os ricos, em sua soberba, se achavam no direito de controlar e subjugar em busca da única coisa que não conseguiam comprar, a vida eterna.

 “Viver na Argentina não diminuía sua importância: o dinheiro, costumavam dizer os Bradford, é um país em si mesmo” (pág. 96)

Finalizada a primeira parte em uma espécie de catarse sombria com pitadas de body horror, acompanhamos mais de perto a rotina e a conflituosa relação de pai e filho no bairro em que passam a morar em Buenos Aires. Essa é uma característica interessante no romance. Não há salvadores ou heróis. Juan, ao mesmo tempo em que tenta proteger Gaspar da Ordem encabeçada pela família de Rosário, o machuca de forma física e psicológica. Sempre o afastando. 

Gaspar, por sua vez, se apega aos amigos com os quais explora o bairro em uma pegada bastante próxima aos clássicos da década de 80. As crianças passam os dias percorrendo livremente as ruas e casas que, aqui, engolem pessoas. 

Pelos olhos de Rosário, voltamos aos anos 60 e 70 e compreendemos melhor a extensão do poder dos Bradford e da Ordem, assim como a relação de Juan, único médium capaz de se conectar com a Escuridão e com a família de origem inglesa da futura mãe de seu filho. 

Antes de voltarmos a Gaspar, o principal eixo da narrativa, a autora explora o relato jornalístico. De tão crível, fui realmente pesquisar a existência do Poço de Zañartú, no qual teriam descoberto restos mortais de desaparecidos e da jornalista Olga Gallard, pois era algo que cabia perfeitamente na realidade tamanha a monstruosidade. 

“Jogam-se mortos na Argentina. (…) tinham lhe jogado um morto.” (pág.516/517).

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A parte final, carregada no ocultismo, traz um Gaspar mais consciente da “maldição” herdada do pai e tendo que lidar com a Ordem à sua maneira, com seus traumas e obsessões.

É ficção, mas também é verdade. A ditadura foi real: os desaparecimentos, os sequestros, as torturas, as mortes, as valas comuns, o terror vindo dos homens.

“Havia muitos ecos agora. Sempre havia quando se cometia uma carnificina; o efeito era idêntico ao dos gritos em uma caverna, permaneciam até que o tempo lhes pusesse um fim. Faltava muito para esse final, e os mortos inquietos se moviam com rapidez, procurando ser vistos. The dead travel fast, pensou.” (pág. 21)

Para além da tensão e do medo do período ditatorial, a narrativa também avança pelas incertezas do processo de redemocratização do país e da epidemia de AIDS. São medos e aflições reais que a autora entrelaça com o horror ficcional de casas cujos cômodos se alteram sozinhos, rituais sombrios, sacrifícios humanos. Elementos capazes de gelar nossa espinha.

As circunstâncias históricas, sociais e culturais, e a forma como a autora trabalha os traumas da nação se destacam e são o estopim da escrita da autora como um todo. Mas em “Nossa parte de noite”, os personagens são as grandes estrelas. Juan, Gaspar, Rosário, Adela, Luis, A complexidade desses personagens e de seus movimentos dentro do romance, a fluência das vozes e a capacidade da Mariana Enriquez de despertar o horror, o terror, o asco, mudaram a minha relação com a literatura de terror e do que ela é capaz. “Mas a verdade tinha maneiras de vir à tona, de raspar a pele, de chutar a nuca” (pág. 478) e é isso que ela faz ao trazer à tona o horror que emana da própria realidade. Ela rasga a pele, chuta a nuca e esfrega os monstros que nos cercam na nossa cara.

Para finalizar, não sou uma grande conhecedora da obra de Stephen King, mas tem uma citação dele que eu gosto muito:

“Eu compreendo o horror como a emoção mais apurada, por isso vou tentar horrorizar o leitor. Mas se eu perceber que não vou conseguir horrorizá-lo, tentarei aterrorizá-lo e, se perceber, então, que não vou conseguir aterrorizá-lo, vou apelar para o terror explícito.” (Em “Dança Macabra”, com tradução de Louisa Ibañez)

Mariana Enriquez faz tudo isso de forma deslumbrante, com uma pegada argentina onde sempre cabe futebol, superstição e crise econômica.

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Revisado por Sandra Acosta

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