Troncos e Barrancos”: Luiza Medeiros mistura ecos do”regionalismo” com retrato da mulher contemporânea em romance emocionante

Luiza Medeiros mergulha em saga de mulher para retratar em romance emocionte as barreiras que as mulheres precisam ultrapassar para viver

Vivemos aos trancos e barrancos. Mais do que isso, vivemos apesar dos trancos e apesar dos barrancos. É que, de todos os sentimentos que existem, a sensação de solidão talvez seja aquela que mais nos atinge. Mais do que a solidão propriamente dita, a sensação de solidão é como uma grande árvore que vai se construindo dentro da gente e vai ganhando força e forma, folhas e galhos, até que fica tão grande que já nem conseguimos olhar para o seu topo. 

Podemos dizer que, de tantos trancos e barrancos, nossas dores vão construindo, de troncos em troncos, grandes florestas de dores, sofrimentos e traumas. Talvez esse seja o ponto principal do romance “Troncos e Barrancos”, de Luiza Medeiros. 

Luiza Medeiros, para quem ainda não conhece, é uma brasileira, agente da Polícia Federal, residente em Teresina, Piauí, que faz sua estreia como romancista com esta obra. Porém, sua trajetória na escrita já é antiga, com participação em diversas coletâneas de contos pelo nosso país. Agora, ela mergulha numa emocionante história que atravessa o norte brasileiro com questões relativas tanto ao caos ambiental em que vivemos, quanto à vida das mulheres em nossa sociedade.

“Por essas bandas, só vinga quem tem coragem e sangue nos olhos. Tá vendo aquilo lá cheio de cruz? A morte olha para a gente todos os dias, espiando o peão fraquejar.”

Mas vamos falar um pouco do livro. “Troncos e barrancos” conta a história de Anahí, uma jovem que vive em uma cidade do interior do norte brasileiro e, um dia, conhece em um circo o amor da sua vida: o mágico Zion.

O que era para ser um grande amor, porém, passa a ser atrapalhado por uma série de questões relativas ao próprio lugar onde ela vive: um espaço conservador, tradicional de uma família patriarcial. A primeira delas, claro, é este conservadorismo local que controla a vida e o corpo das pessoas, em especial das mulheres. Em segundo lugar, um ambiente também atravessado pelas próprias mazelas sociais e econômicas do país, como a escassez de recursos e a degradação ambiental, problemas estes causados, inclusive, por seu pai, um grande madeireiro da localidade. 

Acontece que, na obra, todas as questões vão recair na personagem de Anahí, espécie de heroína da narrativa de Luiza Medeiros. A jovem decide enfrentar esse amor às escondidas, em meio à proibição dos pais e os olhos dos vizinhos. Porém, como em um thriller, um crime transforma a história da jovem completamente, até que ela se vê sozinha no mundo, tendo de lidar com os abusos, traumas e opressões do passado, misturando-se com outros traumas que precisa passar/atravessar no presente. 

Da tentativa de estupro de um fazendeiro local, ao sequestro do seu filho por seu próprio pai, chegando a busca incessante para encontrar a última coisa que lhe sobrou do seu amor, a história é uma espécie de narrativa épica de uma heroína aos moldes românticos que vai atravessando pedras e barreiras para garantir a sua sobrevivência e daqueles que ama. Pedras? Barreiras? Não, melhor dizer troncos…troncos e barrancos.

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Acho que essa é a primeira questão interessante para tratarmos do livro: o curioso jogo de palavras que Luiza Medeiros faz no título. A origem é um trocadilho com a expressão clássica “aos trancos e barrancos”. Porém como o pai de Anahí é madeireiro, sua vida é feita aos “Troncos” e barrancos. Essa é uma expressão bastante antiga e tem origem na Península Ibérica – Portugal e Espanha -, nos tempos medievais. Ela foi usada pela primeira vez em “El Corvo” de “Corbacho o Reprobación del amor mundano” (1498), do espanhol Alfonso Martínez de Toledo, no século XV. Curiosidade é sempre bom.

Outro ponto de destaque é a linguagem e a forma com que Luiza constroi o romance. Com clara influência de grandes clássicos da literatura e fazendo uso também da sua experiência profissional de agente federal, a quem é cobrado que se perceba com cuidado as descrições das coisas e dos casos, é possível ver um cuidado no aprumo, uso e na escolha das palavras. Isso é essencial para criar um “ambiente” que nos faz ver o norte do Brasil em torno de Anahí. Em muitos momentos, Luiza nos dá um verdadeiro retrato do norte brasileiro com suas descrições, como por exemplo:

“O sol peneirado pela cortina de fumaça das queimadas de preparo do pasto nublava o firmamento, exibindo-se escondido na penumbra agonizante que ruborizava o olhar e sufocava os pulmões. Naquela época do ano, a terra era incinerada, desafiando a fecundidade do solo.”

Além disso, temos também um espaço para uma investigação policial daqueles que estariam por trás de uma série de crimes ambientais envolvendo políticos locais, ponto que coloca Anahí novamente no centro de ambas as narrativas. É quando vida pessoal e vida coletiva se cruzam. A história dela é também a história daquela região, daquele povo, daqueles que sofrem e são oprimidos. 

A partir daí podemos notar uma outra questão relevante. Juntando as descrições dos espaços áridos e combinando isso com as questões sócio-históricas e políticas que perpassam o livro, é possível dizer que não é só Anahí que é a personagem principal do livro, mas também os lugares, os ambientes, a arquitetura local, a cor do céu, dos rios, da mata, da lona de circo. Tudo isso conta uma história que são várias. “Os fantasmas que nos assustam moram em nossa mente, Anahí. A morte é transformação. Somos continuidade”

Sem contar as demais personagens que vão formando esse desenho de um ambiente cheio de conflitos: Seu pai, Itagiba, um homem irascível, que não perdoa nem os pequenos erros da filha e faz de tudo para manter uma imagem de “homem de bem”, de chefe local. Zion, o palhaço, espécie de figura romântica, artística e criativa que, ao lado do irmão, tratam de desenhar um imaginário diferente possível para aquela história. Outro Zion, o filho, menino esperto que enfrenta as ruas, mas sempre com a memória e o coração em seu passado perdido. Eloah, a policial treinava para ser fria, mas que se sensibiliza ao ouvir por horas a fio a história de Anahi. E por aí vaí. 

É este o cerne de Troncos e Barrancos: um jogo entre Anahí, a heroína, que materializa a vida de muita gente, combinando isto com o espaço árido da fazenda, a escolinha improvisada em que ela dava aula para as crianças até, por fim, as ruas onde seu filho vivia, um espaço urbano que ela encontra como saída para um pouco de vida digna. 

“Troncos e Barrancos” é um romance com vários aspectos clássicos que o coloca na trilha da tradição da literatura brasileira do realismo chamado de “regionalista”, mas feito por uma mulher contemporânea, o que torna tudo ainda melhor. Luiza Medeiros construiu um romance robusto, que conta uma história e deixa ainda muitas histórias para contar.

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