Se você já andou de barco, certamente lembra daquele momento em que o balanço inesperado faz com que seus órgãos internos balancem, causando uma náusea: a vertigem de ver de perto o vestígio deixado pelo barco na água. Não se sabe quanto tempo o vestígio permanece ali, mas certamente quanto maior a velocidade do barco, maiores são as suas impressões no mar.
Se braço de rio ou alto mar, o balanço é inevitável. Por um instante, você sentirá que tudo ao seu redor começa a rodar e lentamente você começa a buscar um ponto fixo no horizonte com o qual manter contato estabiliza seu organismo. Enfim, acostuma-se com a sensação inebriante causada pelo balanço das águas e o cheiro que emana começa a fazer parte da experiência. Naturaliza-se a maresia, o enjoo e a náusea se acalma dentro da gente.
O Vestígio, O Navio, O Porão e O Tempo
Este é ‘O Tempo’, nome dado a última parte do livro. O tempo como clima em que se estabiliza o racismo, que nas palavras da Christina Sharpe, continua sendo reproduzido nos corpos-territórios negros, é o vestígio que não se apaga e permanece pela violência com a qual oprime. É o que não nos deixa esquecer e também não nos deixa ocupar. Um lugar que buscamos compreender e extirpar, mas que não conseguimos, porque ele de fato não existe, mas não conseguimos deixar de ver.
É confuso, porque nos limita em não-lugares e em não-existências.
“Hortense Spillers escreve que as pessoas africanas empilhadas no porão do navio foram marcadas, conforme as definições euro-ocidentais, não como homem e mulher, mas como propriedade de tamanhos e pesos diferentes”. (p. 135)
O Vestígio, O Navio, O Porão e O Tempo
O livro é dividido em 4 partes: O Vestígio, O Navio, O Porão e O Tempo, e é exatamente nesse entrelace que vamos construindo um fio condutor para chegar até o fim, mesmo no vestígio, na vigília e eu acrescento na vertigem. Nas primeiras páginas a sensação é de completo desconforto e então você se dá conta que precisa se segurar em algo.
O próximo passo, é O Navio. Esse lugar escuro que amedronta e que conduz para muito longe de casa e apresenta uma realidade que oprime e que afasta o leitor da náusea causada pela incerteza e nos coloca em posição de defesa: a vigília. Agora, temos ciência do que encontrar e do que esperar e também sobre a dura realidade de não ter como se esconder: nem no passado, nem no presente.
No Porão, a sensação opressora se sedimenta. É neste lugar em que os nossos ancestrais vindos do continente africano permaneceram e desapareceram: no fundo, no esquecimento e onde não há esperança. O lugar em que o vestígio não nos deixa esquecer e no o “berço e a sepultura continuam sendo produzidos como o mesmo espaço” (p. 162).
Na última parte, ‘O Tempo’, os comparativos com a realidade são retratados com mais veemência, e a autora traz as provas cabais do quanto permanecemos no vestígio e nas condições de negridade em que a existência permite ser. Depois de tanto tempo do regime escravocrata ter sido banido, mulheres e homens com sua negridade ainda são os corpos-alvos, são os “futuros-criminosos” e as “ex-mães”, em lugares que sufocam, até que não possamos respirar:
“E então o primeiro policial, Pantaleo, aplica uma chave de braço no sr. Garner e o leva para o chão. Onze vezes, durante esse ataque, o sr. Garner diz: “Não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar”, até que ele para de respirar“. (p. 201).
A negridade No Vestígio
Se você leu o último parágrafo, então sentirá como é o vestígio. Como é tentar respirar e falar que não consegue até parar de respirar. Sentirá o quanto é difícil ter um dedo acusador apontado para si, sabendo que não fez nada. Ter uma sociedade inteira que não consegue perceber o que vem à frente na história, porque permanece no vestígio de um navio que trouxe dor, desespero e continua na memória de alguns como uma marca e no corpo de quem carrega em si a negridade, como uma dor aguda e repetitiva.
Para além de ser uma leitura muito sofrida, dessas que inebria do começo ao fim, mas que sobretudo reafirma a condição dolorosa da negridade no vestígio, sob vigília constante e ameaçadora, este livro também reúne uma série de referências bibliográficas, artísticas e literárias substanciais para entender todas as nuances do vestígio. Por conta deste livro, estou relendo Amada, de Toni Morrison, e sinto, que esta releitura também vai dar o que falar.