Resenha do livro Madrid com D, de Simon Widman
O charme das palavras. A literatura é quase sempre erroneamente vista como lugar do intelecto, uma atividade solitária praticada por diletantes em seus quartos e gabinetes. Porém, o seu lugar é justamente o oposto desse: é ela quem faz as palavras do uso cotidiano dançarem, é ela quem sacode a linguagem do uso comum e as coloca numa dimensão do encontro, da possibilidade da troca de segredos, de uma utopia de corpos que se traduz em linguagem.
Podemos dizer que, a literatura, no fim das contas, é talvez, a maior forma de charme do mundo, não porque a beleza não seduza, mas porque a beleza se esgota em si enquanto a literatura tem todo o dicionário para trabalhar. Enquanto houver palavras não ditas em seu repertório, um sujeito será capaz de tentar seduzir seu objeto de desejo.
Faço essa pequena introdução porque o tema da nossa resenha de hoje é o livro Madrid com D, romance de estreia do escritor Simon Widman. E que estreia! Simon é um uruguaio de alma brasileira que nasceu em Montevidéu, mas veio para São Paulo logo cedo. Formou-se e atuou como jornalista, foi ghostwriter de outros escritores e, agora, mergulha pela primeira vez na literatura.
Em Madrid com D, entramos em contato com a personagem Elvira, uma jovem jornalista que está dando os primeiros passos na área de literatura e começou a trabalhar em uma revista do ramo literário. Em uma de suas primeiras atividades, recebeu a incumbência de entrevistar Sebastián F. Milies, escritor uruguaio octogenário conhecido pelas obras controversas e pela vida envolta em mistérios, desde diversos casos de sedução a um exílio na Espanha durante a ditadura.
Sebastian, porém, tem uma vida misteriosa também para além da biografia: seus livros igualmente carregam mistérios e segredos. Com obras que flertam com o erótico, o autor sabe como fazer a dança das palavras e seduzir pessoas, homens e mulheres, através do “charme das palavras”, termo que usei pra introduzir este texto. O mais curioso, no entanto, é que não temos em momento algum (ou quase) nenhum trecho dos livros do autor, então não conseguimos desvendar do que é feito este mistério da sedução de suas obras. Será uma coisa mais Marquês de Sade? Anais Nin? Henry Muller? Cassandra Rios? Não sabemos
Porém, para a narrativa isto pouco importa, o charme está lá e Elvira, ao lado de seu amigo Ernesto, um gay descolado apaixonado pelos livros de Sebastián F. Milies e totalmente seduzido por suas palavras, embarcam para o país vizinho para conhecer pessoalmente o tal escritor.
Como era de se esperar, aos poucos, a jovem Elvira também se vê capturada pelo charme do escritor e começa a sonhar com sua figura jovem, totalmente seduzida e envolvida pela capacidade que o uruguaio tem de capturar a atenção das pessoas e fazer com que cada uma delas se sinta única, especial. Elvira, por exemplo, começa a se fixar em detalhes do escritor:
“(…) durante a entrevista também se fixou por uma fração de segundo na boca de Sebastian. (…) Ela divagou brevemente sobre quantos lábios teria beijado ao longo de tantas décadas de conquistas. E, agora, sozinha em seu quarto, permitiu pensar brevemente em outras regiões que aquela boca deveria ter percorrido com entusiasmo e destreza. ‘Quantos seios, coxas, nuncas terá conhecido?”
Trata-se de uma viagem idílica pela carga sexual que Sebastian despertou na jovem. Em um momento, ela coloca Carlos Gardel para escutar: “Por una cabeza”, canção que faz parte da trilha de Perfume de Mulher, filme em que Al Pacino, cego, dança com uma jovem, enquanto se imagina na posição da mulher que dança com o senhor mais velho.
Neste ponto, podemos entrar na tarefa de construção do romance de Simon Widman. O que ele se propõe a fazer é de uma dificuldade hercúlea: construir um escritor do zero e, traço a traço, refazer sua biografia, seus primeiros passos na arte e criar no entorno dele o mesmo fascínio que temos por autores reais. Na verdade, dentro de Madrid com D, temos simultaneamente um romance ficcional e uma biografia imaginada, procedimento muito comum, por exemplo, nas obras de Jorge Luis Borges com suas atribuições errôneas.
Simon inventa, por exemplo, “O Reino da Hipocracia”, um livro de crônicas de Sebastian que teriam sido provenientes de colunas que o autor escrevia em sua revista “Adelante”:
“Nessas críticas, sempre temperadas com muito humor e ironia, era implacável com a falsa moral predominante que, dizia ele, julgava e condenava com rigor, sem direito à defesa, as pessoas que ousassem ultrapassar os limites convencionados pela sociedade.”
Para se ter ideia da invenção proposta por Simon, “hipocracia” seria um neologismo criado por Sebastian, que significa “uma sociedade comandada por uma elite de hipócritas”. Ao contrário dos hipócrtias, Sebastian, este “autor criado pelo autor” tinha uma admiração pelos seres desviantes, por aqueles que não se adequavam às normas:
“tinha uma admiração especial por transgressores. Não poderia deixar de reconhecer uma empatia especial com as pessoas que se arriscavam a desafiar a lei e os costumes. Na literatura, disse, são sempre os personagens mais interessantes.”
Bom, diante dessa aproximação e admiração intelectual e quase sexual que se forma entre Elvira e Sebastian Milies, a jovem é convidada para escrever a biografia do autor que, segundo vamos descobrindo, está no fim de sua vida. Por não conhecê-lo antes da ocasião da entrevista, seria ela o ponto mais “neutro” para escrever essa vida.
Porém, como dissemos, o charme do autor atinge também Elvira que, ao lado de Ernesto, entende que sobre este homem não cabe uma biografia fria, isenta, mas o relato apaixonado de quem pôde viver com ele.
Entramos então em uma espécie de efeito droste, também conhecido como o efeito de boneca russa, em que lemos um livro de um escritor (Simon) que escreve sobre uma moça (Elvira) que está escrevendo o livro sobre um sujeito (Sebastian) que, por sua vez é um escritor de livros. A metalinguagem, sempre bela, faz com que penetremos no interior da construção dessas duas obras, a real e a ficcional, de modo que ambas caminhem juntas pelo charme deste autor que, uma vez inventado, passa a existir até mais do que outros que realmente estão por aí.
Para finalizar, deixo meu momento preferido do livro: um diálogo entre Elvira e Sebastian em que tratam do título do livro “Madrid com D”. Se começamos dizendo do “charme das palavras”, aqui terminamos dizendo que Simon Widman vai nas minúcias da sedução e encontra a camada do “charme das letras”.
Em determinado momento, Elvira pergunta porque Sebastian escolheu a Espanha para se exilar durante a ditadura:
“- Porque amo as palavras em espanhol que terminam com a letra “d’, como Madrid.
“- Em português Madri não tem ‘d’ no final – disse Elvira quase se desculpando.
“- Sério? sem o ‘d’ Madrid perde todo seu charme (…) As palavras terminadas com ‘d’ são fortes, com personalidade. E talvez essa seja a maior diferença entre o espanhol e o português.”
E finaliza dizendo:
“O lema do Uruguai é ‘Libertad o muerte’. Poderoso, não? Ninguém duvida que daremos nossa vida para garantir a liberdade. Por isso, quando decidi sair do Uruguai escolhi uma cidade cujo nome termina com a letra ‘d’ para recomeçar minha vida e retomar as minhas lutas com a mesma energia das palavras oxítonas.”
No fim, podemos dizer que “Madrid com D”, de Simon Widman, é uma obra sobre a paixão pelas palavras. A paixão que as palavras podem despertar em uma pessoa ou uma massa de pessoas e contaminar o mundo com seu desejo, sua força de sedução, sua capacidade de transformar arte em ação.
Podemos ver que Widman é não só um apaixonado por livros, mas um apaixonado por tudo que os livros podem fazer em sua potência em devir. Madrid com D é sobre um autor que não existe porque precisa ser inventado. Quantos mais desses a gente precisa inventar, hein?
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