Estou cada vez mais entendendo a literatura como um gesto de gentileza perante o mundo. Numa forma de vida coletiva que é tão brutalizante para os corpos, adotar a gentileza da arte tem a força revolucionária das pequenas coisas: o nascimento de uma criança, o colo de um gato, uma mensagem de um melhor amigo. A literatura é isso, mas é mais: ela conjuga este mundo com o outro desconhecido e nos lança diante de outros tempos de forma que nossa viagem é muito maior do que “só” em um livro.
Confesso que escolhi ler “as mãos da minha mãe”, de karmele jaio (a capa do livro traz o título em minúsculo e quem sou eu pra mudar), por dois motivos: o primeiro é que ela é uma autora de língua basca e nascida no País Basco, comunidade considerada autônoma da Espanha que fica localiza no norte do país, na fronteira com a França.
Neste caso, a minha gentileza é essa: fazer ecoar a literatura de uma língua minoritária que ameaça desaparecer igualmente com um povo espremido em um país em que faz e não faz parte. A própria karmele reflete sobre isso no livro, ao mencionar a personagem que possui um marido inglês:
Não sei se ele alguma vez entenderá o esforço de tantas para evitar que uma língua morra. É difícil entender quando seu idioma é falado no mundo todo. É difícil entender como uma língua pode ser tão frágil quanto um bebê recém-nascido, que precisa de proteção, assim como sua filha.
Além disso, o título também me chamou atenção: “as mãos da minha mãe”, talvez porque eu também esteja no momento de ver minha mãe envelhecer e o livro fez a gentileza de dividir isso comigo.
“As mãos da minha mãe”, de karmele jaio, conta a história de uma mulher chamada Nerea que está com a mãe internada em um hospital. Ela sempre teve uma relação distante e fria com a mãe, mas como ela parou de falar, Nerea vai todos os dias a esse hospital e observa sua mãe, as mãos, os olhares, os gestos, na espera que ela dê algum sinal de que está se recuperando.
Esta mulher, porém, está num momento conturbado da vida: seu casamento com um inglês parece estagnado, seu trabalho sufocante faz com que ela quase não tenha tempo de ver sua filha crescer e um antigo amor do passado, Carlos, ainda assombra sua memória.
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A narrativa do livro sofre uma virada quando sua tia viaja para o País Basco para ajudar a cuidar de sua mãe e Nerea descobre que tem muito mais a ver com sua mãe do que imaginou: em um breve momento de lucidez, sua mãe pronuncia um nome de homem.
Assim, em uma jornada woolfiana, elas vão em busca de transportar a mãe até um farol de modo que ela possa se reconectar com um passado que ficou perdido tal como Nerea que chega a refletir sobre o vazio contemporâneo da ideia de amor:
Concentramos toda a nossa energia no trabalho. Deixamos as sobras para o nosso relacionamento. Dedicamos a ele o tempo em que já estamos cansados, depois de uma jornada de trabalho. É sempre o tempo que sobra, a energia que sobra, os sorrisos que sobram. Quando nos encontramos, estamos quase vazios, como se alguém tivesse roubado nosso conteúdo.
Se é verdade que a literatura contemporânea está cada vez mais voltada para as pequenas histórias, as pequenas vidas e as pequenas memórias, as mãos da minha mãe pode ser visto como um dos principais símbolos desta frente. O silêncio da mãe, a mãe enrugada que só se deixa ver por conta desse silêncio, um amor de juventude e um encontro profundo com quem mais se ama. Sem dúvida, um dos livros mais bonitos de 2024!
Revisado por Larissa Silva
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