“Tem coisas que não vêm no contracheque.” (Prof. Iber Reis)
Essa frase lapidar e da qual jamais me esquecerei é de um ex-professor meu de História no Ensino Médio, que, anos depois, ao ser reapresentado a mim como colega, e saber que eu havia sido seu aluno, a proferiu enxugando os olhos marejados.
E por que relembrá‐la agora?
Porque recebi há dias um exemplar de “Conjugado”, debut de Luiz Ribeiro , um dileto ex-aluno meu na faculdade de Letras, no início deste século.
Arguto, irrequieto, interrogativo e reflexivo, sua inteligência logo despontou, se destacou dos demais e aderiu às minhas aulas irreverentes e irônicas por alguns semestres produtivos.
Não há nada de surpreendente pra mim reencontrá-lo em franca ascensão intelectual; era uma mera questão de tempo : doutor em Memória Social na área de Literatura Brasileira, dramaturgo, escritor, produtor cultural, “influencer e podcaster”, em “Conjugado” – bela edição da Ed.Patuá, com capa de Luyse Castro e introitos de Frederico Portela, Luiz Capucho e Renata Magalhães – Ribeiro enfeixa uma variada paleta de impressões e reflexivas memórias a partir de uma temporada de dez anos em um apartamento de exíguos 17m², num edifício com mais de uma centena de duplicatas.
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Numa linguagem assemelhada à prosa poética mas sem qualquer relação estável com a forma, Ribeiro desfila com o agudo olhar cinematográfico uma pequena galeria de tipos fellini-rodrigueanos – todos no limiar dúctil entre o eu-mimético e o eu-imaginário – em seu entorno, distantes da caricatura ou estereótipos.
À vista desarmada, as rupturas com a linearidade arbitrária da narrativa apontam para uma dicção no diapasão de um Marinetti futurista, entretanto, sem a abolição da sintaxe nem a absorção de todos os “solecismos e barbarismos” da antropofagia andradiana. Quero dizer que o arranjo dos versos ou disposição das palavras assume uma dicção muito própria e autônoma, e a fronteira entre o respeito/desrespeito à gramática normativa é uma ilusão; Ribeiro desconstrói em versos bárbaros nem sempre totalmente brancos, como se estivesse atrás de um biombo de vanguarda que oculta um poeta denso, hábil e profundamente conhecedor de seus antecedentes estéticos e de seus pares, capaz de burilar uma joia como:
“Os barulhos
de velhas e vizinhas
faziam sentido
para quem viveu
sem ter tido
nem vizinhas
nem velhas.”
Uma das grandes contribuições para a teoria literária em meados do século passado foi a intertextualidade/polifonia de Bakhtin, sistematizada por Julia Kristeva, que, basicamente, preconiza que todo texto/obra/realização de arte dialoga, remete ou alude a um outro texto/obra/realização de arte. Aplicada à narrativa de Luiz Antonio Ribeiro, o leitor lê – nas entrelinhas – o que ele (muito) leu. Assim, à flor do texto, emergem várias confluências, algumas já citadas, como Marinetti, Oswald e Mário de Andrade, Fellini e Nelson Rodrigues, e algumas outras, provavelmente, involuntárias, como o também modernista Manuel Bandeira, notado, de forma sutil, no capítulo 10, como em “Momento no Café”, ao elencar as reações perante a (iminente) morte, e, incisivamente, no capitulo 13, quando um verso assinala: “A primeira vez que eu vi Nadia”, que aponta para “Teresa”, de Bandeira, que por seu turno é uma paródia a “O adeus de Teresa”, de Castro Alves ( e ao pouco lembrado “Teresa”, de Álvares de Azevedo). Para o alto e além de Bakhtin, uma meta-metaparódia…
É inevitável, ainda, observar o eixo nevrálgico de “Conjugado” – o ente que mexe e retira as coisas – e cotejar ou aludir ao seminal conto de Julio Cortázar, “A casa tomada”, embora se afastem por complexidades distintas, a similaridade é notável. Nesse, uma presença impalpável ocupa os cômodos ostensivamente, até a expulsão de seus moradores. Em Ribeiro, o ser (?) se infiltra e mexe nos objetos, furta, às escondidas, na ausência de seu morador. Há, ainda, em Cortázar, uma nota de sobrenaturalidade e suspense.
E como citei Fellini e Nelson na composição das personagens – interlocuções ou autolocuções com o narrador-personagem-alter ego – não posso concluir sem sublinhar um detalhe importante, não fossem as referências um cineasta e o outro, dramaturgo, de quem lê a imagem, ou mesmo decupa a cena: de todos eles, note que “Polaco” é o “escada”, o contraponto para as ações/reflexões; e Dezdentão, a conexão com o mundo exterior, o essencial e único elo entre fora/dentro, aqui/lá.
“Conjugado” não é (só) um locus que catalisa uma torrente existencialista, mas a construção de uma acurada alegoria: a metonímia de um narrador-alter ego apoiada sobre uma antítese dentro/fora.
Nesse diapasão, a narrativa enclausurada de Ribeiro não recebe o diagnóstico de uma agorafobia ( na acepção grega de ágora), mas uma “agorafilia”, neologismo impróprio que cunhamos desde já, para traduzir uma adoção pelas “agoridades”, acentuando o que é efêmero, transcendente e distópico.
Enfim, antes que isso aqui descambe, já tendo descambado, pra uma resenha literária inoportuna, quero dizer que “Conjugado” é uma auspiciosa estreia de Luiz Antonio Ribeiro, e preconizo um autor com lugar reservado no cenáculo da literatura brasileira contemporânea.
E onde entra a frase lapidar de Iber Reis, epígrafe desse texto? Ilustra a dedicatória e o autógrafo que recebi: “para meu professor Marcelo J Fernandes, este ‘conjugado’, com um pedaço do que vivi, aprendi, fui e sou também graças a você. Luiz Antonio Ribeiro, 06/11/24.”
Marcelo J Fernandes, novembro/24.
Sobre Marcelo J. Fernandes
Marcelo J. Fernandes é carioca, professor, poeta e músico. Possui pós-doutorado em Estudos Literários (UFMG). Atua como docente e gestor nas redes pública e privada há 35 anos. Membro-titular da Academia Petropolitana de Letras e da Academia Brasileira de Poesia. É detentor de vários prêmios literários no Brasil e no Exterior, com 12 livros publicados (“anacolutos”, prêmio Carauta de Souza, 2023). Presente conferencista em inúmeros seminários, congressos, eventos, feiras literárias e, mais recentemente, em lives e podcasts com temas referentes à Língua Portuguesa e à Literatura Brasileira, além de ter produzido videoaulas para a SEEDUC-RJ, exibidas na Band TV, TV Alerj e no YouTube.