Quando escreveu “Ideias para adiar o fim do mundo”, Ailton Krenak já era um líder revolucionário. Desde seu protesto na Constituinte de 1987 até 2024, os povos originários permanecem como os maiores vigilantes das matas do Brasil, embora seus direitos estejam sob constante ameaça. É a partir dessa realidade que João Bernardo Caldeira e de Yumo Apurinã levam a obra de Krenak para os palcos.
Para tratar desse Brasil que ignorou os direitos dos povos originários até a Constituição de 1988, o espetáculo enfoca a trajetória de vida de Yumo Apurinã, há seis anos radicado no Rio de Janeiro. Um indígena do povo Apurinã, nascido na Aldeia Mawanaty, no território Cinta Larga, em Rondônia, conhece o teatro ao frequentar a Igreja e decide ser ator. Em conflito com as ideias de pecado e de expulsão do paraíso, que separa humanidade e natureza, ele confronta o cristianismo em busca de sua ancestralidade, solapada pelos processos coloniais.
“Eu não sei a minha língua”, constata, atônito. Sob memórias de massacre, desmatamento e evangelização, a pergunta fundamental do best-seller de Krenak é então colocada: “Somos mesmo uma humanidade?”
Ao investigar os costumes e o passado de seu povo, o Demiurgo Tsurá, o ritual Xingané, o poder de cura dos Kusanaty (pajés), esse indígena vasculha a si mesmo, enquanto desvela o etnocídio, a expropriação de terras e o sistemático aniquilamento do povo indígena e de seus direitos, inclusive em todas as constituições até a de 1988.
Da literatura para os palcos
Em cena, esse corpo racializado pela sociedade, que lhe imputa a pecha de “índio”, vasculha os estereótipos, enquadramentos e racismos vivenciados inclusive em sua carreira como ator. É na escola que Yumo descobre que quem descobriu o Brasil foi Pedro Álvares Cabral e escuta dos colegas: “Você é índio de verdade? Você come carne de macaco?”. Com frequência, suas personagens usam roupas rasgadas, não possuem família, usam cocar ou têm os pés descalços.
“Sou fruto de histórias de sobrevivência. Nasci e cresci num mundo já cristão. A minha referência de força espiritual é estar ajoelhado, abrir mão dos meus desejos e renunciar a minha vida. Quando me dei conta disso, foi assustador. Eu não sou contemplado por esse pacote de vivência dolorida que a bíblia oferece”, afirma Yumo. “Prefiro acreditar no encantamento desta vida do que numa vida eterna no paraíso ou no inferno”.
“Durante o processo de ensaios, Yumo decidiu que, a partir das palavras de Krenak, ele precisava contar a sua história e compartilhar conosco a sua própria busca”, conta João Bernardo, diretor, idealizador, produtor e autor do texto do espetáculo, ao lado de Yumo. Ao constelar as trajetórias de Yumo e Krenak, “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo” nos descortina os procedimentos visíveis ou menos evidentes da sistemática violentação sofrida pelas populações indígenas ainda hoje. “A colonização ainda está acontecendo”, diz. “O racismo, o sexismo, a expropriação de terras e a monocultura ainda formam os pilares da sustentação socioeconômica deste país”.
Neste contexto desolador, o ator-personagem, num trabalho de atuação voltado para as ações psicofísicas, partilha com o espectador sua caça a si mesmo. Será que adiar o fim do mundo é adiar o seu próprio fim? De onde podemos encontrar os nossos paraquedas coloridos e evitar a queda do céu, ideias imprescindíveis das culturas originárias? Como nos mobilizar e nos envolvermos diante de cenários distópicos e aterrorizantes?
“Quando escuto Krenak, sei que estou ouvindo muitas outras vozes de sábios e parentes. Ailton é um porta-voz que representa mais de 300 etnias, como disse em seu discurso de posse na ABL (Academia Brasileira de Letras). Quando eu me apresento num palco, minha mãe, meu pai e meus antepassados estão ali, nunca estamos sozinhos. Se minha memória está viva, a deles também”, reflete Yumo. “A intenção deste espetáculo é buscar um caminho consciente de transformação interior. Enquanto o teatro puder me fazer existir, é com ele que vou continuar sonhando e suspendendo o meu céu. O teatro é sagrado. Viver é sagrado”, completa o ator.
Aos 106 anos, autor é um dos finalistas do Prêmio Jabuti na categoria “escritor estreante de poesia”.
O diretor endossa a fala de Yumo e complementa: “Quem sabe, neste momento em que as tragédias ambientais ficam cada vez mais escandalosas, possamos ampliar a nossa escuta para outras formas de envolvimento com a terra e os povos da floresta. O teatro pode ser mais um dispositivo a convocar saberes que foram adormecidos, de comunhão, luta, partilha e festa”.
“Antes de escutar e encarnar o que um sonhador de mundos que Ailton Krenak é, eu tive que sonhar. É necessário encarnar o sonho. Eu acredito que encarnei, por isso que escutei. Muita gente não sabe escutar. Porque a cidade é barulhenta. Quando dormimos, vamos dormir com o barulho da cidade e do trabalho. O encanto é preciso. A poesia da vida é precisa. Se não, a morte nos encontra. E ela pode nos encontrar morto ou vivo. Quando a morte chegar até mim, que ela me encontre vivo”, finaliza Yumo.
Ficha técnica:
Inspirado nas obras de Ailton Krenak
Atuação e texto: Yumo Apurinã
Direção e texto: João Bernardo Caldeira
Preparação corporal: Giovanna Aguirre
Figurinos: Wangleys Manaó
Iluminação: Djalma Amaral
Direção musical: Felipe Storino
Composições: Xipu Puri e Felipe Storino
Projeções mapeadas: Renato Krueger
Cenário: João Bernardo Caldeira e Yumo Apurinã
Consultoria iconográfica: Juão Nÿn
Assistência de direção: Caroline Ozório
Fotografia: Andrea Rocha ZBR
Assessoria de imprensa: Alessandra Costa
Identidade visual: Rafael Andrade e Rodrigo Simões
Redes sociais: Sophia Lyrio
Intérprete de Libras: Ana V. Lopes
Audiodescrição: Cinema Falado
Residência artística: Aldeia Marakana
Assistência de produção: Alipia Mattos
Produção executiva: Ludimila D´Angelis
Idealização e direção de produção: João Bernardo Caldeira
Produção: Pequieté e São Bernardo
Serviços:
Estreia: 28 de novembro
Temporada de quinta a domingo, às 20h – até dia 22 de dezembro
Local: Teatro Futuros – Arte e Tecnologia
Endereço: Rua Dois de Dezembro, 63 – Flamengo
Classificação: 12 anos
Lotação: 63 lugares
Duração: 80 min
Ingressos: IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO em Rio de Janeiro – Sympla
Valores: R$ 60,00 (inteira) / R$ 30,00 (meia)