História de pessoas centenárias é o mote de O livro dos cem anos, do escritor carioca Marcelo Ambrosio
“Eu vivo e sobrevivo, sobreviver é ter o que lembrar. O resto é planta, é água que corre e vai embora, some.”
Muitos pensadores durante o século XX sentenciaram que a memória não é formada por aquilo que lembramos, mas principalmente por aquilo que esquecemos. Inclusive, uma das obras mais famosas do escritor palestino Mahmud Darwich ganha justamente este nome: “Memória para o Esquecimento”. É que, na medida em que a memória é um atributo móvel e flexível, toda memória é resultado daquilo que o esquecimento esqueceu de esquecer. Assim, memória é tudo aquilo que, no presente, reatualiza o passado.
Um dos maiores clássicos da literatura latino americana, Cem Anos de Solidão, do escritor colombiano Gabriel García Marquez, tem como uma de suas personagens principais a figura de Úrsula, a matriarca de Macondo e aquela que sobrevive a tudo e a todos, como por exemplo, aos 17 Aurelianos, filhos bastardos do Coronel Aureliano Buendía. Úrsula, a figura que representa estes “cem anos de solidão”, vive aproximadamente 120 anos e recolhe em si a própria história da cidade, de sua família e, como um todo, da própria formação complexo e ambivalente da América Latina.
Agora imagine uma obra que reúna não só uma Úrsula, mas várias? Imagine quantas histórias de quantos mundos distintos seria possível contar? Pois esta é a proposta de Marcelo Ambrosio no seu romance de estreia “O Livro dos Cem Anos”, publicado pela Editora Nauta.
O Livro dos Cem Anos é uma espécie de caleidoscópio de histórias de um grupo de senhores e senhoras centenárias que, vivendo em um mesmo asilo e convivendo com “as pessoas de roupa branca”, contam suas vidas enquanto veem, de um lado, um presente que se repete irrefreadamente e, de outro, um passado riquíssimo do que lembrar, esquecer e narrar.
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Um dos elementos mais marcantes do livro está na composição um tanto centrípeta da narrativa. Diante destas pessoas múltiplas que acumulam mais de cem anos de memória, Marcelo vai compondo um mosaico caótico que, assim como em Cem Anos de Solidão, nos permite o prazer raro de se perder numa narrativa e, ainda assim, estar a todo instante ciente de que este é o procedimento principal para se ler tal livro.
“Não se vive nesse lugar. A vida não é isso. Não pode ser.”
Desta forma, estamos diante de narrativas de pessoas que habitavam mais ou menos uma mesma região, o nordeste brasileiro, quase todas vindas do sertão, algumas donas de propriedade, outras cujas terras foram perdidas, outras, ainda, que entraram na luta pela garantia de terras. Diante dessas histórias, muitas delas acabaram se cruzando ou tiveram seus destinos traçados muito tempo atrás através da família uns dos outros. Agora, de volta ao presente, o que acompanhamos é a narrativa destes sonhos que, ou viraram realidades já passadas ou sequer chegaram a se concretizar.
Segundo conta Marcelo Nunes na apresentação do livro, “a inspiração para o romance nasceu durante os anos em que Marcelo Ambrosio trabalhou como geólogo de campo na Amazônia, na caatinga e no cerrado, além dos seus anos como jornalista, e em especial de um projeto realizado no ano de 2001, no Jornal do Brasil, com depoimentos de brasileiros centenários.”
Isto porque O Livro dos Cem Anos não é feito somente de ficção, pelo contrário, em diversos momentos a ficção é também campo para contar a violenta história de nosso país, seja nas narrativas em que personagens acompanham o bando de Lampião e Maria Bonita, presenciando a benevolência e a força, a militância e os desgostos da vida dos cangaceiros, seja nas figuras que viram o bando passar enquanto permaneciam em suas terras. Sobre o cangaço, diz:
“Ser cangaceiro era uma liberdade que tentava os homens, uma vida sem patrão, sem parede, muro ou fronteira. Ganhar na valentia, comer na demasia, morrer na certeza de ter enfrentado o injusto mundo.”
É com eles, inclusive, que acompanhamos uma das cenas mais bonitas do livro em que duas mulheres, personagens centrais para o romance, são chamadas para a feitura de um parto complicado que foi minuciosamente vigiado por Maria Bonita que garantiu a saúde e a privacidade da parturiente. A figura de Virgulino, o Lampião, ganha também um relato curioso:
“Eu gosto e quero falar do grande Virgulino Ferreira porque é assim, desse tamanhão, que ele merece ser reconhecido mesmo tanto tempo depois que cortaram a cabeça na traição de Angicos. Um homem valente, que cuidava dos seus, que tratava com amor as mulheres do seu bando, que não se enrabichava pela primeira formosura que encontrava quando chegava nas cidades. (…)
Também podemos destacar a presença de Antônio Conselheiro, grande líder popular, enquanto ele fazia o trajeto pelas cidades do interior e ia angariando fieis para a construção da futura Canudos. O mais interessante destes trechos é que podemos acompanhar a intensa luta de ideias que se tratava diante da relação entre mitologia popular – Conselheiro – e poder estabelecido – igreja – e como isso rebatia nos fieis que pendulavam entre um lado e outro.
“Eu me chamo Antônio Conselheiro e no arraial de Canudos haverá uma Igreja, que precisamos erguer para agradecer ao bom Deus e ao Dom Sebastião pelo fim da nossa caminhada, pelo sinal recebido, pela força contra o Anticristo dessa República que não honra a Deus. (…) Do nosso arraial, só sairemos para retornar ao pó de onde viemos e vosmecês estão convidados para conhecer o nosso futuro”.
O Livro dos Cem Anos é um compêndio de vidas, um baú de histórias que culminam todas no mesmo lugar: abandono, solidão, porém a alegria e a esperança de ter vivido. O sofrimento do presente não é questão de entender a vida de forma niilista, mas compreender que a passagem do tempo é justamente o reencontro nosso com nossa solidão primeira e última.
Assim, este livro dos cem anos de Marcelo Ambrosio é um potente relato sobre a importância de reunir histórias e, mais que isso, de relatar histórias, pois, quando fazemos isso, não só transmitimos nossa vida para outros, mas também mantemos a nossa própria história viva.