Na ilha do Marajó, na Amazônia, Marcielle (Jamili Correia), ou “Tielle”, como é chamada pela família e amigos, vive uma existência humilde em meio à floresta, andando pela mata, catando açaí do pé e brincando com suas irmãs, enquanto seu pai e sua mãe trabalham, seja caçando ou espremendo o açaí para vender.
Nesses momentos, Manas se beneficia muito da experiência em documentário da diretora Mariana Brennand, com uma câmera ágil, móvel, mas focada nos processos que constroem esse mundo. Ela se demora vendo uma criança subindo na árvore, na feitura do açaí ou em uma interação entre irmãs. Uma vida simples, precária, mas tranquila.
Contudo, rupturas se fazem sentir no meio da paz. Tielle pergunta sobre uma irmã que, aparentemente, se mudou para o Rio de Janeiro e nunca mais mandou cartas. Na escola, jovens recebem livros de ciência, mas com algumas páginas grampeadas, e em casa, após sua rede arrebentar, o pai, Marcilío (Rômulo Braga), insiste que ela durma na mesma cama que ele, enquanto a mãe, Danielle (Fátima Macedo), observa, consternada.
Manas realiza um procedimento muito similar ao de outro filme exibido ano passado no Festival do Rio, o britânico How to Have Sex, onde, pouco a pouco, a violência de gênero se torna difícil de ignorar, mesmo que alguns personagens busquem fazer exatamente isso.
Brennand busca evidenciar a questão por meio de um jogo de contrastes. Após a cena mostrando as seções grampeadas do livro de ciências, vemos um ensaio para uma dança escolar, e uma das colegas de Tielle está visivelmente grávida. Em casa, a curiosidade da menina a faz retirar os grampos do material, e ela descobre que a seção censurada é, justamente, a que lida com o sistema reprodutor. Após um momento de abuso, temos um culto evangélico, onde a pastora instrui os fiéis a “abafar” os problemas em casa para que a família permaneça forte.
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Manas explora várias facetas da violência de gênero, não somente o aspecto social/religioso, mas também o econômico. Parte do cenário local são as “balseiras”, jovens que visitam as balsas que atravessam a região, vendendo alguns itens como açaí e camarão, mas também o próprio corpo. Um ato cruel, mas que também representa uma espécie de fuga, a chance de uma mínima independência financeira.
Esses dois lados estão absolutamente integrados naquele local. Uma comerciante local informa uma amiga de Tielle que “o amigo dela da balsa” está a caminho, e quando Tielle denuncia o ato de seu pai para a lojista, só recebe de volta um pragmatismo nada consolador: “Você não é a primeira. Vai passar”.
O longa é pesado, desolador, mas a violência nunca é explícita. Cabe ao espectador percebê-la em certos gestos e também na transformação de Tielle. É o primeiro trabalho de Jamili como atriz, e impressiona sua capacidade de sustentar o drama do filme. Manas é recheado de closes, deixando evidente o impacto da situação na expressão da protagonista, que vai de jovem sorridente a uma pessoa sisuda, forçada a enxergar a vida com outros olhos.
Próximo ao final, o longa parece se entregar a uma conclusão fácil, confortável, que certamente deixaria os espectadores felizes consigo mesmos. Mas nada disso acontece, e Tielle é forçada a amadurecer mais rapidamente, buscando a única saída para seu tormento. Manas é o retrato de uma sociedade que fracassou e fracassa com mulheres de todas as idades, onde a justiça, ou algo próximo disso, só pode ser encontrada pelas próprias mãos.
Texto de cobertura do Festival do Rio 2024