“Corre Cotia”: livro do indígena Kaká Werá Jecupé antropomorfiza animais para nos fazer mergulhar na floresta

A antropoformização dos animais é uma das formas mais tradicionais de se fabular, porque permite que a gente atribua aos bichos características humanas que muitas vezes seriam difíceis de serem traduzidas. Essa tradição fica mais conhecida no Ocidente através das fábulas de Esopo, autor grego que viveu no século 5 a.C., no entanto, esta é uma atividade largamente praticada também pelos povos originários. É o que vai nos mostrar o livro Corre, Cotia, do escritor Kaká Werá, com ilustrações de Sawara, publicado em 2024, pela Editora Peirópolis. 

Para quem não conhece, Kaká Werá Jecupé é um escritor paulista de origem tapuia. Nascido em 1946, ele viveu com os guaranis da mata atlântica paulista nos anos 1980. Após longo tempo na educação, ele passou para a escrita e ganhou prêmios de dramaturgia, como o Zumbi dos Palmares (1988) com a peça A incrível morte de Nego Treze na favela Ordem e Progresso, entre outros. 

Seguindo a tradição dos povos originários, Kaká usou de referências ancestrais para criar a história de Corre, Cotia. Na obra, conhecemos um grupo de animais que, enquanto jovens, aprendem sobre as coisas do mundo em uma escola. A cada dia, eles vão para uma parte da floresta para aprender com um professor-animal diferente algo de essencial sobre aquele ambiente e que pode enriquecer seu conhecimento e suas vidas. 

Uma dessas professoras é a sabida Suindara, uma Coruja com poderes especiais que resolve trazer para a turma um novo assunto: a construção de uma árvore genealógica. Assim, ela pede que cada animal volte para a casa e busque com sua família a história de seus antepassados em busca de sua ancestralidade. 

Eis que a pequena Cotia que, ao lado do seu amigo gambá, Saruê, eram desprezados por boa parte da turma, sai em busca dessas suas origens. Sua mãe parece traumatizada pelo passado e alega falta de memória, sugerindo que o filho vá até sua tia. Ao chegar na casa de sua tia, porém, descobre que ela foi sequestrada, deixando apenas um pequeno papel com uma série de números. É quando os humanos entram na história e interferem naquele mundo que parecia absolutamente equilibrado. 

O mais incrível do livro, além das belíssimas ilustrações de Sawara, que por acaso também é filha do autor, é que Kaká Werá consegue transformar uma história de aprendizado, educação e reconhecimento de seu passado em uma espécie de thriller florestal, em que a Cotia vai sair em uma aventura investigativa para descobrir não só a história de sua tia, mas também o passado misterioso de seu pai que desaparecera de repente. O passado, então, se atualiza nessa corrida contra o tempo no presente, mas aponta para um caminho essencial para construção de um futuro.

Sem tratar os seres humanos necessariamente como vilões, o autor também mostra como o problema essencial está principalmente na interferência humana dentro de um ciclo natural, impedindo que as vidas tomem seu curso previsto pela própria natureza. De um lado, biólogos que, apesar da boa vontade, mapeiam bichos como se fossem produtos numa galeria, de outro, traficantes de animais que fazem desses bichos uma espécie de recurso monetário infinito. 

Corre Cotia, assim, mais do que ensinar, nos desvela a necessidade de inverter nosso ponto de vista e perceber o mundo através do que a floresta diz, afinal, somos também parte dela. Se quisermos fazer parte de um mundo que ainda será mundo, temos que entender os ensinamentos que cada um desses seres deixam e caminharmos juntos com eles. A professora Coruja era mágica, mas nós não somos, é com a mão na massa que a gente pode começar a transformar nossas vidas que, neste momento, estão já na beira do abismo. 

Compre o livro aqui:
https://amzn.to/4eKK5PX

Related posts

Projeto ‘Uma nova história’ incentiva o hábito de leitura no DEGASE

A atmosfera da vida particular soviética em “No degrau de ouro”, de Tatiana Tolstáia

“Coração Periférico”, de Diego Rbor: criatividade e poesia contemporânea na periferia