Fruto de uma parceria entre a União Brasileira de Escritores (UBE) e a Associação de Escritores de Xangai, a Antologia Sino-Brasileira de Contos nasce com a proposta de unir os dois países, China e Brasil, através de uma produção cultural que fortalecesse os laços e trocas literárias, ligando, como enfatizou o Presidente da UBE, Ricardo Ramos Filho, “as incríveis montanhas de Guilin à riqueza natural do Pantanal, o rio Yangtzé ao Amazonas.”.
O livro, bilíngue – português/mandarim, mandarim/português, traz 16 contos, sendo 8 de autores brasileiros e 8 de autores chineses. Todos traduzidos diretamente de uma língua para a outra. Aí está o ineditismo da obra.
Do lado brasileiro, a seleção apostou em quatro nomes clássicos e quatro autores contemporâneos. O primeiro é a certeza da vitória, pois não tem como errar com Machadão. “A cartomante” abre os contos brasileiros. Logo após, temos Lima Barreto, com o irônico e crítico “O homem que sabia javanês”. Na sequência, Mario de Andrade com “O peru de natal” e Hilda Hilst com “Agda”. Um quarteto de respeito.
Com relação aos nomes contemporâneos, foi interessante conhecer o trabalho de autores que eu, particularmente, não havia lido ainda. Ou seja, para muitos brasileiros, essa antologia também é uma forma de conhecer autores nacionais, gente que está escrevendo agora. Mário Araújo, com “Rauziclíni”; Cinthia Kriemler, com “O sêmen do rinoceronte branco”; Carla Mühlhaus, com o inédito “Poesia de bilhete”; e Paulliny Tort, com “Má sorte”, representam essa nova geração com nossos problemas sociais, nossas angústias, medos, sonhos, mas também nosso toque mágico.
Do lado chinês, eu gostei muito deles terem optado por autores contemporâneos. O conto mais antigo foi publicado originalmente em 2010. E digo isso, pois muito do que chega traduzido de literatura chinesa tem relação com a literatura clássica ou certos períodos históricos, como por exemplo, a Revolução Cultural (1966 – 1976).
O século XX foi uma época de intensa transformação e é normal que se produza muito com relação a esses eventos históricos e políticos. Porém, há mais, sempre há. É só olhar para a nossa produção literária. Eu sinto falta dessa pluralidade, de autores que estejam escrevendo o aqui e o agora. E nisso, a antologia acerta em sair do óbvio e trazer novos ares, mais camadas e mais complexidade para a literatura chinesa traduzida para o Brasil.
Da pressão estética sofrida pelas mulheres a dons transformados em maldição pelas mãos dos homens, passando pela investigação de um antigo assassinato e um casamento para lá de inusitado, temos de tudo um pouco na seleção de contos chineses.
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Pan Xiangli, traduzida por Marina Silva, traz, por exemplo, duas amigas vindas de famílias abastadas e que tomam chá da tarde em um hotel em Xangai. Nesse encontro temos bolo, línguas afiadas e muita pressão sobre os corpos e as vidas das mulheres chinesas contemporâneas.
“Havia um ditado que dizia que, dos 18 aos 28 anos, eram os anos dourados de uma mulher. No entanto, para elas que estavam vivendo isso, não era bem assim. A pressão de estudar, mesmo que se entrasse na universidade não diminuía muito. Além disso, você tinha que fazer uma pós-graduação. Portanto, dos 18 aos 22 anos a vida não era fácil. Depois disso, mesmo que se conseguisse uma pós-graduação, viriam mais três anos de estudo. No fim teria 25 anos. Se estivesse trabalhando basicamente começaria a se firmar aos 27 anos. Se estivesse fazendo doutorado, ainda não estaria formada e estaria atormentada escrevendo uma tese… Assim, a vida, que nem havia realmente começado, de repente tinha o seu fim decretado: o melhor da vida já tinha terminado. É muito repentino e muito injusto.”
“Offshore”, de Xiao Bei, traduzido por Cesar Matiusso, aborda o apagamento do trabalho feminino, visto que o nome de um homem carrega mais peso e poder.
“Em vez de ser um autor de verdade, ele era melhor ainda fingindo ser um autor. (…) Ela escrevia, ele vendia. Ele recebia pagamentos à vista pelos direitos autorais daquelas histórias.”
Em “Menina velha”, Yao Emei, traduzida por Erasto Santos Cruz, explora a complexidade das relações familiares, principalmente entre mãe e filha e escancara a gordofobia da sociedade ao trazer diálogos como esse:
“Se você quer ser uma menina por toda a vida, a primeira regra é não ser gorda. Por isso, em casa, nossa balança sempre está no lugar mais visível e conveniente possível. (…) Lembre-se garotas gordas têm uma vida mais difícil.”
“O casamento de Peter”, de Xue Shu, traduzido por Cesar Matiusso, eu achei bem divertido e traz uma questão bastante atual que é a dificuldade que muitas pessoas têm de estabelecerem relacionamentos interpessoais no mundo contemporâneo. Ele vai ao extremo e eu confesso que torci pelo Peter no final.
Já “A ilusionista”, de Sun Wei, traduzido por Rud Eric Paixão, e “A vida da senhorita Zhu San”, de Ren Xiaowen, traduzido por Marina Silva, deixaram meu coração em pedaços. O primeiro por ver a beleza e a inocência de um dom ser transformado em algo duro e repugnante pela ganância dos homens, o segundo por acompanhar o desprezo da sociedade e o estigma que carrega uma mulher, o estigma da vida pregressa, o estigma da idade.
Porém, foi muito gostoso ver duas mulheres de diferentes idades em uma inusitada amizade dançando e admirando o céu em “A mulher que dançava sob o céu estrelado”, de Teng Xiaolan.
Eu disse que havia suspense e ele está presente no conto “Despedida de inverno”, de Na Duo, com tradução de Beatriz Henriques. Nele, um detetive particular tenta conquistar um antigo amor enquanto investiga um também antigo assassinato. Dessa investigação muitas coisas do passado e do presente acabam emergindo, assim como o machismo do dia a dia:
“Todos têm fobia de casamento até um certo ponto, mas as mulheres, ao chegarem a essa idade, deveriam pensar em se estabilizar.”
Publicado no Brasil e na China simultaneamente, em formato digital, o livro pode ser baixado gratuitamente em plataformas digitais. Adquira o livro aqui!
Anamauê!
Ficha técnica
Título: Antologia Sino-Brasileira de Contos
Editora: e-galáxia (9 setembro 2024)
Tamanho do arquivo: 4128 KB
Equipe editorial brasileira:
Coordenação editorial e edição: Sandra Espilotro e Ricardo A. Fernandes
Revisão dos textos: Ieda Lebensztayn
Tradução dos contos chineses para o português: Beatriz Henriques, Cesar Matiusso, Erasto Santos Cruz, Marina Silva, Rud Eric Paixão
Coordenação e revisão técnica das traduções para o português: Ho Yeh Chia – Professora de língua e cultura chinesa do Departamento de Letras Orientais da USP.
Projeto gráfico e conversão para e-book: e-galáxia
Capa: Mika Matsuzake
Equipe editorial chinesa:
Editor-chefe: Ma Wenyun
Editores: Hu Peihua, Du Haiyan
Editores contribuintes: Xiao Yuanmin, Xu Xiaoyan
Tradução dos contos brasileiros para o mandarim: Zhao Guangming