“Não me entrego, não”: monólogo de Othon Bastos é celebração ao teatro e cinema brasileiro

Uma das cenas mais icônicas do cinema brasileiro é o trecho final de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), filme de Glauber Rocha. Na canção de Kiko Loureiro, ouvimos a frase “Se entrega, Corisco! / Não me entrego não”. Não havia frase mais icônica do que essa para dar nome à história de vida de Othon Bastos, ator de 91 anos que completa nos palcos mais de 70 anos de carreira. 

“Não me entrego não”, espetáculo apresentado no Teatro Vanucci, no Shopping da Gávea, é o primeiro monólogo de Othon que tem direção de Flávio Marinho. Em cena, por aproximadamente duas horas, o ator conta a sua história nos palcos e no cinema através de suas memórias que, como ele mesmo conta, produziu um calhamaço de mais de 600 páginas. De cara, o que chama atenção é a vitalidade do ator que, esbanjando talento, bom humor e força, alia uma técnica primorosa que funde elementos teatrais e cinematográficos em sua representação. 

Em cena, ao lado dele, temos a participação especial da diretora assistente Juliana Medella que interpreta a “memória” de Othon, explicando trechos, contrapondo alguns relatos e fazendo também a função de ponto quando necessário. O efeito é divertido e enriquecedor, afinal, é como se Othon carregasse duas memórias: uma íntima, a sua, e uma pública, a nossa, formando assim o maior monólogo do mundo. 

Dentre as histórias, conhecemos, por exemplo, o momento em que Othon faz sua primeira peça, uma releitura de Shakespeare através de uma possível relação homossexual entre Othelo e Iago, isso ainda na década de 50. Conta também as suas histórias ao lado de Glauber Rocha, principalmente da feitura do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” no qual foi escalado de última hora. Nesta altura, inclusive, tem um dos momentos mais divertidos da peça em que Othon conta como, ressabiado, passou as 9 horas de viagem até o norte da Bahia dando dicas e apresentando suas inseguranças a Glauber que, para sua surpresa, acatou tudo que ele disse. 

Como deixar de mencionar também as histórias com Zé Celso, no teatro Oficina, ou em “Um grito parado no ar”, de Gianfrancesco Guarnieri, em que somos privilegiados com a remontagem de uma das cenas. Ou, ainda, sua experiência em Londres em que fazia e refazia “um soldado parado ou figuração muda”. 

Leia também: “Não me entrego, não!”: aos 91 anos, Othon Bastos celebra vida e carreira em seu primeiro monólogo

Foto: Divulgação

Em termos de linguagem, trata-se de um monólogo de intensa reflexão sobre dispositivos teatrais, montando uma colcha de retalhos com recursos teatrais tradicionais que nunca se esgotam: os pequenos jogos cênicos organizados por Flávio Marinho evitam que o Othon Bastos caia em um espetáculo nostálgico, voltado para o passado. “Não me entrego não”, então, está inundado de um presente cênico próprio, atualizando a todo instante a narrativa para que o aqui e agora se sobreponham à memória.

Além disso, apesar de elaborado sob minuciosa pesquisa, o que presenciamos é uma peça porosa, que caberia muitas outras narrativas, porém também hermética, composta por uma série de dispositivos teatrais que se retroalimentam. Até o ponto feito por Juliana Medela é posto em cena como um acréscimo ao que é visto, não como um apêndice, uma nota de rodapé ou um “auxílio” A Othon. 

Tentei trazer um pouco de forma simples o que vi porque a emoção de ver Othon em cena transborda toda nossa razão. Me peguei gargalhando e chorando. Me peguei conversando com desconhecidos da cadeira ao lado para comentar trechos. Descobri que “Não me entrego não” não é apenas uma peça de Othon, mas uma peça em que Othon conta a sua história no e do teatro e do cinema brasileiro.

Na cenografia, vemos grandes banners com algumas das cenas icônicas do ator que são ilustradas como recortes que trazem à tona a nossa história como espectadores de Othon.

“Não me entrego não” é um espetáculo de resistência em múltiplas formas: resistir a viver no passado, resistir à memória, à acomodação, à ditadura, ao colonialismo inglês, ao desejo de ser dentista, às dificuldades financeiras. Othon Bastos e o teatro e cinema brasileiros são faces da mesma moeda, em que se é e se faz história ao mesmo tempo. E eu, na sexta-feira, fui testemunha de uma história que não pode ser parada de contar. 

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