“Quando eu me encontrar” (2024): retrato sensível de uma família em meio ao silêncio dos que ficam

Existem dois tipos de histórias: a história dos que vão e a história dos que ficam. Na tradição dos que vão, temos, por exemplo, desde Odisseu ou Ulisses, da Odisseia até o Filho Pródigo, da Bíblia. No cinema, a história dos que vão geralmente são retratadas em filmes de estrada, os famosos road movies em que sujeitos partem pelo mundo em busca de autoconhecimento e novas descobertas. Porém, do outro lado dessa moeda, estão aqueles que ficam e cujas vidas são completamente alteradas por aqueles que se vão sem deixar notícias. Esse talvez seja o elemento principal de Quando eu me encontrar. 

Quando eu me encontrar (2024) é o filme de estreia das diretoras Amanda Pontes e Michelline Helena e relata a história de uma família que precisa lidar com a fuga da jovem Dayane. Com foco na personagem de Mariana (Pipa), adolescente que vive ainda uma adaptação em escola particular na qual é bolsista, acompanhamos a história de Marluce (Luciana Souza), mãe das meninas, e de Antônio (David Santos), ex-noivo de Dayane que se vê diante da fuga da futura mulher em meio à compra do enxoval para o casamento.

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O mais bonito do filme, a meu ver, está justamente neste jogo entre ausência e presença, na medida em que Dayane, apesar de sequer aparecer no filme, é quem permeia todas as relações. Este é um recurso comum no teatro: apresentar longamente um personagem ausente para, assim, valorizar a sua presença quando ela se der. Isso  acontece, por exemplo, em Tartufo, de Moliére, em que a personagem é citada desde o primeiro ato, mas aparece apenas na cena VII. 

No caso de Quando eu me encontrar, a escolha é até mais radical porque a personagem de Dayane aparece em momento algum e praticamente não dá sinal de vida, cabendo às personagens somente se adaptarem à sua ausência e se prepararem para seu retorno. 

Neste sentido, todas as figuras do filme são obrigatoriamente atravessadas umas pelas outras diante desta falta: Mariana precisa reconfigurar a relação com sua mãe que deposita nela as esperanças de ver a filha ter sucesso na vida; enquanto Antônio que desprezava Cecília (Di Ferreira), uma amiga cantora de Dayane, vai perceber que é na amizade com esta mulher a única forma que ele terá de preservar alguma proximidade com seu amor perdido. 

Outro ponto importante de Quando eu me encontrar é a relação direta do filme com a trilha sonora. O título, inclusive, é inspirado na canção de Cartola “Preciso Me Encontrar”: 

“Deixe-me ir
“Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar (…)
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar”

A musicalidade da obra também se ancora na personagem de Cecília que tal como uma narradora, submerge por fora da camada narrativa e nos expressa dinâmicas das personagens que dificilmente poderiam ser narradas através dos diálogos. De modo que as canções, em contraste, incorporam uma outra camada poética que se alia aos silêncios das personagens para dar ainda mais tons a esse vazio deixado por Dayane. 

O filme, assim, de forma singela, silenciosa, simples, mas sem ser simplória, nos apresenta um  um retrato bastante sensível dessas dinâmicas familiares de famílias de baixa renda em um bairro periférico de Fortaleza.  Revelando, também, como diz Milton Nascimento, que “chegar e partir são só dois lados da mesma viagem” e que, quem fica, também faz uma longa viagem por essa coisa chamada vida através de um tempo que, ao mesmo tempo que não para, também não passa. Mas se move sempre que a gente tenta se encontrar.

Confira o trailer de Quando eu me encontrar:

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