Lançado em 1930, o alemão Thomas Mann escreveu uma novela a qual buscava entender a genesis da mentalidade fascista/ nazista que se espalhou na Europa do século XX. A Companhia das Letras lançou, em 2023, Mário e o mágico: uma experiência trágica de viagem , com tradução de José Marcos Macedo. Antes de adentrarmos no enredo da história, é preciso dizer que antes, Mann não gostava que sua novela fosse lida como uma sátira política. Apenas quinze anos mais tarde, em uma carta de 1947, o autor admite:
“Eu próprio ainda tenho uma predileção por essa história. Quando a escrevi, não acreditava que Cipolla fosse possível na Alemanha. Eu superestimei patrioticamente minha nação. A suscetibilidade com que a crítica recebeu a narrativa já deveria ter me mostrado para qual direção as coisas caminhavam e o que não seria possível no povo com a formação mais refinada – exatamente nesse povo.
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Em relação à história, encontramos uma cidadezinha litorânea da Itália, a fictícia Torre di Venere, onde uma família alemã passa as férias de verão. No entanto, o que deveria ser um refúgio de descanso e prazer, transforma-se em um palco de desconforto e perturbação, preparando o terreno para o trágico evento. É possível sentir o desassossego desse lugar logo nas primeiras páginas. Hospedados em um hotel, a família tenta sentar para comer na área externa, onde há uma bela vista, mas os funcionários os impedem, com uma justificativa medíocre: o lugar é reservado para “nossos clientes”. Ora, a família também era hóspede. O homem daquela família – cujo nome não é revelado- logo percebe que há uma separação entre os italianos e os turistas estrangeiros. Outro episódio desconfortável acontece quando a família está na praia. Apesar do clima quente, o narrador está impaciente, há umas crianças enfadonhas, o que ele chama de “crianças patrióticas”. Sobre o patriotismo infantil, no posfácio da edição, Marcus Vinicius Mazzari diz que:
“[…] o narrador corrobora uma visão que Walter Benjamin articulou num ensaio cuja redação é concomitante à de Mário e o Mágico: apontando para a vacuidade e para o caráter aviltante que subjazem a toda e qualquer doutrinação ideológica de crianças, Benjamin propõe nesse texto, Programa de um teatro infantil proletário, uma pedagogia empenhada tão somente em garantir às crianças a realização de sua infância, uma vez que sobre esta idade apenas o verdadeiro pode atuar de maneira produtiva.”
Na praia lotada de crianças irritantes, a filhinha do nosso narrador suja sua roupa de banho de areia. Ela, então, corre para água, tira seu maiô, e lava-o. Tal ação choca os outros banhistas, que enxergam aquela atitude um atentado contra os bons costumes. A moral das pessoas de bem foi ferida por um corpo infantil. A família, por conseguinte, é levada à delegacia e tem de pagar uma multa. Percebe-se, aqui, que o mal- estar o qual paira entre os estrangeiros e os italianos é uma representação das tensões políticas vividas pela Europa no século XX, principalmente com a ascensão do líder fascista Benito Mussolini. Nesse ambiente, em que Mann define como patriotismo artificial, a família resolve ir ao espetáculo de um grande mágico, um tal de Cipolla. O clima, ainda, continua estranho, o espetáculo inicia após um atraso considerável. O Cipolla, ao entrar no palco, revela-se uma figura grotesca, com uma coluna deformada, dentes podres e amarelados. O narrador, de início, já percebe a farsa:
“Mas me cabe sublinhar que, em sua postura, em sua fisionomia, em suas maneiras, não havia nada de engraçado ou burlesco; expunham-se, antes, rígida seriedade, recusa de todo o humorismo, um orgulho por vezes irritadiço, inclusive certa dignidade e presunção de aleijado – o que, no entanto, não impediu que, de início, os seus modos provocasse risadas em vários pontos da sala.” ( Mann, 2023, p.25)
As pessoas, especialmente as crianças, ficam eufóricas diante daquele farsante. Cipolla começa seus truques com cartas, aritmética e soma de números. Mas Cipolla não apresenta suas mágicas como qualquer outro ilusionista, ele é autoritário com o público. Utiliza técnicas de hipnose a fim de controlar a mente de seus espectadores, transformando-os em meros fantoches de seu desejo. Cipolla não apenas entretém; ele subjuga, humilha e domina. Ele é a metáfora de como um líder carismático pode exercer poder absoluto sobre uma massa submissa. Para ilustrar o autoritarismo de Cipolla, ressalto o seguinte acontecimento. Em determinado momento da apresentação, o mágico chama dois homens para participar de um truque mágico, entretanto, seria necessário que ambos fossem alfabetizados. Ao descobrir o analfabetismo de seus assistentes de mágica, Cipolla se revolta: “Escandaloso- disse frio e mordido- Voltem aos seus lugares! Todos sabem escrever na Itália, nela, em sua grandeza, não há espaço para ignorância e obscuridade.” ( Mann, 2010, p.33)
A experiência trágica do espetáculo ficou reservada para o garçom Mário, personagem que aparece ao final da novela, Mann o descreve com uma “melancolia primitiva”. Ele é escolhido por Cipolla para uma última demonstração de poder. Assim, Mário é hipnotizado e forçado a acreditar que a figura do mágico é sua amada. Esse momento culmina em uma humilhação pública e, nesse último ato, há muita brutalidade, algo que não se espera de um passeio em família. O que deveria ser uma viagem para descansar e curtir o sol na costa italiana, transformou-se em um trauma, porque, segundo o narrador, a Torre di Venere “[…] evoca uma atmosfera desagradável.” ( Mann, 2023, p. 9) Mann, por meio da novela, esmiúça a vulnerabilidade do indivíduo perante as forças hipnóticas do totalitarismo. O fascismo, lamentavelmente, não foi um fenômeno que se limitou ao século passado, não é um cadáver que enterramos, pelo contrário, é uma assombração. Basta lembrarmos do líder estadunidense cuja face tem cor de cenoura. Se o fascismo é uma assombração, ainda há Cipollas que andam por aí fazendo espetáculos hipnóticos, mas essa cena fantasmagórica não está acontecendo na calada da noite.
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Quem foi Thomas Mann?
THOMAS MANN nasceu em Lübeck, na Alemanha. Em 1929, foi premiado com o Nobel de literatura. Quando Hitler tomou o poder, Mann partiu para o exílio, nos Estados Unidos. Retornou à Europa em 1952 e viveu na Suíça até sua morte, em 1955.
1 comentário
Texto excelente!