“O desaparecimento dos peixes”, de Júlia Moysés: quando uma distopia nos é semelhante demais

É impossível começar esse texto sem mencionar que O desaparecimento dos peixes, da brilhante Júlia Moysés, foi uma das melhores leituras que concluí em 2024. O apego que senti em relação à narrativa vai muito além do meu simples gostar de distopias; o apego ultrapassa questões da própria literatura e narrativa lapidada na obra. Acredito que até mesmo um crítico literário não teria condições de resumir o que se passa em O desaparecimento dos peixes. E eu, com a minha ainda tão pequena experiência em vista do repertório que virei a construir, tentarei descrever o que acontece de tão fascinante nas duzentas e poucas páginas que Júlia confecciona tal qual um ourives.

Publicado recentemente, em junho de 2024, através da Cas’a Edições e com suporte da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, Júlia Moysés escreveu esse romance em 2020, um momento em que restavam apenas trevas aos que seguiam sobrevivendo. Isolada ao lado de seu filho de um ano e meio, a autora conseguiu encontrar em si a criatividade e força escassa no mundo naquele contexto tão trágico – e assim nasceu O desaparecimento dos peixes.

Primeiro livro de ficção de Júlia, a obra é inspirada no interior e no congado mineiro, temas que constantemente cruzam o caminho da autora em pesquisas e demais trabalhos. O congado, é importante ter conhecimento para que a narrativa fique ainda mais clara, é uma manifestação cultural e religiosa de origem afro-brasileira. Em um contexto distópico, encontramos um governo totalitário que, assim como todos os poderes que subjugam seu povo, insiste em apagar a identidade dos cidadãos da cidade de Monte Esperança.

Inclusive, um dos aspectos que mais me cativaram em relação às nomenclaturas é o fato de que o povo de Monte Esperança é constantemente chamado de “esperançosos”. Afinal, sobra à população algo diferente de esperança em um ambiente dominado pelo totalitarismo? Ainda, a propósito de questões mais próprias da estrutura da obra, vale pontuar que os esperançosos são uma comunidade congadeira, o que impulsiona o leitor a explorar inúmeras referências aos reinados de Minas Gerais.

“Como tinha aprendido com os antigos, Zé Dendágua mantinha a esperança de que dias melhores estavam por vir. Esperançar, para o bem ou para o mal, formava a marca de sua gente.

Submetidos à opressão do governo, os esperançosos são obrigados a renunciar às suas raízes, sobretudo às relacionadas à religião e fé. Por seguirem uma religiosidade que difere da dos homens que estão no poder, o povo é forçado a abdicar de suas crenças e coagido a se encaixar nos padrões instituídos por seus governantes. Ainda que O desaparecimento dos peixes seja uma distopia (distopia para uns, utopia para outros), não é difícil encontrarmos nessa ficção eventos muito semelhantes aos que nos deparamos diariamente no Brasil.

Um leitor de distopias como Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, conseguirá observar ainda mais claramente como a narrativa nos guia efetivamente ao âmago do tema trabalhado no livro. Inclusive, algumas questões de nomenclatura ficaram pulsando na minha cabeça e me levaram a lembrar das denominações de instituições e células governamentais postas no texto de Orwell anteriormente mencionado. Assim como o Ministério Paz (curiosamente responsável pela guerra) e o Ministério do Amor, os esperançosos lidam com ambientes como o Prédio Municipal da Palavra Salvadora Obrigatória. A propósito dessa menção, vale ressaltar que esse prédio é propositalmente construído no santuário da Nossa Senhora do Rosário, uma das figuras femininas mais pungentes na fé dos esperançosos.

Leia também: “Escamas de mil peixes”: Maitê Lamesa escreve poesia como mergulho nas águas turvas de um rio

Júlia traz uma ampla gama de personagens únicos, e o tal zagal interventor é o mais odioso deles. Antes é importante esmiuçar os substantivos que compõem o cargo desse sujeito: “zagal” é definido no dicionário “apascentador de gado; pastor, pegureiro”; já “interventor”, termo um pouco mais óbvio, é aquele que promove uma intervenção. Por aqui já notamos esse grande absurdo: o homem que está diretamente ligado ao povo, que teoricamente deveria ouvir e auxiliar, tem como papel comandar o seu gado, como nos diz a palavra “zagal”. Os esperançosos, assim como muitas outras populações submetidas à opressão, não são enxergados como sujeitos, mas sim vistos como animais – animais esses que em algum momento serão abatidos, como sabemos que acontece no setor pecuário. 

Ao iniciar a leitura, é capaz que você logo relacione o zagal interventor aos homens poderosos do nosso povo que usa Deus como escudo para justificar toda e qualquer atitude e ação que infrinja algum direito humano ou algo nesse sentido. Conforme a leitura avança, certamente irá pipocar em sua mente o seguinte pensamento: bem que conheço um zagal interventor. É importante pontuar que o zagal visita as famílias de Monte Esperança com o propósito de relembrá-las da importância da estima da pátria e dos Planos Maiores – que obviamente destoam dos planos traçados pelos esperançosos e por suas tradições.

Quando os peixes desaparecem

Júlia Moysés

Os chocantes acontecimentos que iniciam a narrativa já são suficientes para prender a atenção do leitor, ainda que esse tenha chegado ao livro por acaso, sem pleno conhecimento do que se tratava. Após a proibição de seguir suas crenças, os esperançosos recebem um aviso da Cabocla d’Água, outra figura feminina extremamente importante de suas tradições: “[…] João espalhou a notícia de que a Cabocla d’Água – ela própria – havia dito que secaria as águas de vida até que suas oferendas voltassem a ser colocadas às margens do rio nas noites de lua cheia”.

Ainda que os esperançosos de fato quisessem demonstrar tal devoção à Cabocla d’Água, eles tinham ciência de que tal feito chegaria rapidamente aos ouvidos do zagal interventor, e aquilo certamente se tornaria um trágico episódio na história de Monte Esperança. 

“’O senhor falando assim, defendendo cantoria, tambores e danças pros encantados, é ousadia demais’, disse alguém. ‘É claro que seremos todos presos ou coisa pior’, falou outro. ‘Pior que virar as costas pro rio?’, perguntou Felipe, quebrando o medo com a voz estremecida de quem buscava sabe-se lá onde a coragem de fazer o certo.”

Procurando ouvir os pedidos da Cabocla d’Água, os esperançosos vão até a moradia de zagal interventor, todos cantando, dançando e rodopiando: “O zagal permaneceu em silêncio até que, antes que Domingos começasse, autorizou que ele falasse. O velho relatou tim-tim por tim-tim a questão, desde a mensagem recebida por João até a decisão, coletiva, de pedirem a retomada dos rituais da Cabocla d’Água. Pouco depois, Domingos e Felipe saíram do Prédio de cabeça baixa e, olhando para o chão, deram o recado: ‘‘vão para casa’”. 

O desfecho do acontecimento? A noite ficou conhecida como a Revolta dos Peixes; João fora levado para o Hospício Central e, como foram avisados, os peixes não foram mais vistos. E deixei para o final uma das questões mais curiosas do livro: para além do desaparecimento dos peixes, Monte Esperança ainda tem de enfrentar uma doença que faz as pessoas desaparecerem igualmente. Sempre reforçando a necessidade de ter a memória do passado e manter viva a chama da tradição de um povo, Júlia Moysés se sai incrivelmente bem ao escrever essa fantástica narrativa.

E assim finalizo dizendo: não consigo imaginar um leitor ou uma leitora que não venha a colocar O desaparecimento dos peixes na lista de melhores leituras da vida.

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