Romance “Filha” trata de luto e das relações entre mães e filhas

No último sábado, uma cena me fez me lembrar do romance Filha, da escritora Nayara Noronha (editora 7 Letras). Eu tomava um sorvete numa das esquinas da Praça da República, em São Paulo, quando percebi um táxi estacionando ao meu lado. De dentro dele, saíram uma senhora com lenço na cabeça e uma mulher carregando uma bebê muito pequena. A senhora sorriu orgulhosa para mim; notei que a mulher mais jovem caminhava com dificuldade e tinha pulseiras de hospital. Interpretei que avó, mãe e filha tinham recém-saído da maternidade, um momento marcante na vida de qualquer família.

A história de Filha gira em torno da relação de três mulheres: uma avó, uma filha e uma neta. Entretanto, no livro, a neta nasce morta. A partir dessa morte traumática e o consequente luto dessas mulheres, a autora mergulha nas memórias e sentimentos de cada personagem, revelando as complexidades e as nuances de suas interações. Assim, a relação entre elas vai sendo revisada, esmiuçada, digerida.

Três visões sobre mães e filhas

Filha é dividido em três partes, intituladas a partir dos nomes de cada vértice desse triângulo familiar. Estela, Elena e Ester expressam suas vozes por meios diferentes, seja no formato de diário, por meio do monólogo-diálogo ou pelo diálogo de terceiros. Na primeira parte, a mais longa, a autora contextua a morte dessa bebê e a história daquela família através dos olhos da avó. Na segunda, somos convidados a imaginar a dor da perda de uma filha e o lento processo de retomada da vida de uma mãe. Por fim, a terceira parte guarda uma surpresa aos leitores.

Filha vai além do luto

Apesar de o luto ser o gatilho para que toda história se desenvolva, expresso inclusive na primeira frase do livro – “Sou uma avó sem neta.” –, Filha fala das relações exaltadas, conflituosas e complexas que podem existir entre o amor de mães e filhas. Nayara acerta ao mostrar, por meio das suas personagens, não haver soluções simples e finais 100% felizes para anos de discordâncias e incompreensão. Dessa forma, compreendemos, com a leitura, que somente o amadurecimento emocional das partes pode elevar, pouco a pouco, as relações para novos patamares de empatia e confiança.

Com a leitura de Filha, a imagem da nova família vista na Praça da República ganha novos tons. Espero que a avó, a mãe e a filha estejam bem e que saibam, desde o princípio, a viver em harmonia com suas diferenças.

Sobre a autora

Nayara Noronha nasceu na cidade de São Paulo em 1988 e mora em Belo Horizonte com seus dois gatos. É professora e pesquisadora na UFMG e tem contos publicados em coletâneas. Estreou como romancista com Filha, em 2022.

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