Na cultura brasileira, os curandeiros e rezadeiras dão ao caju um poder curativo, protetor. Purificador. Faz sentido então dizer que Liniker parece interessada em destampar as raízes de um cajueiro em seu segundo álbum solo, “Caju”, lançado esta semana em todas as plataformas digitais, com produção de Fejuca e Gustavo Ruiz. Logo na primeira música que dá nome ao trabalho, o alter-ego da artista canta como se olhasse da janela de um avião, talvez partindo de um lugar onde viveu algo intenso que não coube na mala na hora de voltar. “Antes de dizer tchau”, há muita coisa para ser dita.
“Tudo”, a segunda faixa, vai descarnar alguns pedaços da memória. Liniker balança as sensações com melodias pequenas no início, que precisam de espaço e um tantinho de sofrimento para revelar sua grandeza. Talvez, a levada pop de “Tudo” seja um pseudofruto. A castanha mesmo está no que vem a seguir.
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Amaro Freitas foi um dos convidados para compor com a artista. Em recente publicação, o músico, que é de Recife, reconheceu a fome de Liniker pela pesquisa. “Sempre o bom dia da Lin vem com “o que você anda escutando? Você já ouviu essa música?”. Isso tá bem nítido em “Caju”. Se a guitarra na introdução de “Veludo Marrom” sai de um dos galhos do R&B de “Best Part”, canção da norte-americana H.E.R, alguns versos como “quem me ligar diga que tô nas nuvens de um poeta” transpiram a influência de “Nuvem Negra”, feita por Djavan. Junto de um belíssimo coral gospel, a Orquestra Jazz Sinfônica apresenta um florescimento. É mágico o momento em que a música se quebra em duas partes, dando um “chega pra lá” na timidez para fazer um “escarcéu” de verdade. Impossível não ouvi-la como se estivéssemos no meio da rua, em um musical.
Se o cinema se espalha por “Caju” em formas sutis – como na citação “Amor Para Recordar”, ou escancaradas, ao falar de “Kill Bill” – o lance dessa voz é cantar durante um “Road Movie”, com a cabeça para fora do carro. Sim, porque a bordo do seu possante, a personagem vai mudar as estações de maneira aleatória, atrás de um som que surpreenda, cure e purifique. Ao seu modo, as músicas se transformam em linhas de chegada.
Em “Ao Teu Lado”, Liniker se encontra em “Amaro Freitas”, “Ana Caetano” e “Vitória Falcão”, lugares onde pode ficar à vontade para se derramar. Amaro é um compositor capaz de costurar vários acordes e ritmos em silêncios. A orquestração, juntamente com a doçura do duo AnaVitória, acompanham bem o conceito. Contudo, a potência da voz de Liniker cuida para o mistério não desfiar. Mesmo em uma canção cheia de melisma e falsete, sua técnica vocal não é exibida, prepotente. Nada disso. Liniker não faz porque pode, e sim porque a música pede.
Os quase sete minutos de “Veludo Marrom”, “Ao teu lado” e “Me Ajude a Salvar os Domingos”, a quinta faixa, reforçam a vontade da artista em aproveitar a viagem por uma via dupla, já que é raro no cenário pop de hoje ouvirmos canções desinfectadas do efeito que o Tik Tok causou. Na maior parte de “Me Ajude a Salvar os Domingos”, a percussão de Kainã do Jejê e Dennys Silva traz uma intenção reggae para o groove, e em um pequeno trecho é até possível ouvir um funk carioca. Tudo devidamente coberto pelo baixo fazendo as linhas no melhor estilo “Ain’t No Sunshine”, de Bill Withers.
Ainda em “Me Ajude a Salvar os Domingos” rola um groove com os tambores ritmando em uma zona próxima ao que o BaianaSystem fez em “Jah Jah Revolta, Pt.2”, servindo como lavagem de escadas para receber o grupo em “Negona dos olhos terríveis”. Se a sinestesia das letras de Liniker se aperfeiçoou, os solos espaçados da produção inteligente só amplificam as combinações propostas pela compositora. A salsa à la Mestre Ubiratan, inclusive, avisa que Liniker chegou a Salvador disposta a inventar verões, marés, sereias e o que mais achar pelo caminho até as dunas de Abaeté. Ao vivo, um tantinho mais vitaminada, “Negona dos Olhos Terríveis” pode ser perfeita para os blocos de carnaval.
As rezadeiras protagonizam “Maygona”, que na cultura do candomblé significa “banho”. O fender rhodes de Marcelo Maitano no encerramento encaixa direitinho na introdução de “Mas que Nada”, de Jorge Ben. Não por acaso, Obá pode ser vista como um “orixá que se alterna entre a força de uma guerreira e a ingenuidade de uma apaixonada“. A boa parceria com Melly em “Papo de Edredon” e a imponência de “Popstar” outra vez afloram o road trip da artista à procura de novas direções tanto na temática do amor, quanto nos arranjos. O verso “pote de ouro” está na letra do samba de “Febre” e, em seguida, dá nome ao forró tecno-brega criado com Priscila Senna. Ah, se a Marília Mendonça estivesse por aqui para formarem um trio…
Se Liniker não fosse uma intérprete de tamanha força (é só ouvir como ela tira “Popstar” do lugar-comum, por exemplo), o disco soaria desconjuntado. Sua voz decanta o volume de gêneros afinando o conceito. Como o caju nasceu no Brasil desde antes da colonização e tem forte apelo econômico, social, cultural e educacional, há uma história sendo contada de uma viagem em busca de raízes, de terra, de memória e sombra.
Não é raro encontrar a Liniker em rodas de samba em São Paulo, shows no Sesc e no meio do público dos festivais. Parece estranho escrever isso, mas ela é uma cantora ‘pop’ que gosta de música. No disco, caju pode ser um homem ou mulher. Musa e desafeto. Amor eterno e contatinho. Pra mim, sua forma definitiva sequer é humana: caju é a própria música. Ao evocar o fruto, Liniker semeia a canção e o sentimento por esse ofício maior do que a si mesma. Sua música existe para florecer sua humanidade.
O verdadeiro fruto do cajueiro é a castanha. A flor, ou seja, a carne, é uma anomalia. Isso porque esse pedaço mais feio, rústico, nodoso, que precisa ser queimado para ser consumido com mais sabor, mostra a razão de “Caju” não ser só um trabalho apaixonado por cantar sobre o amor e usá-lo como gramática, mas por ter o sentimento como matéria-prima de um processo. Doloroso e demorado.
A dançante “Deixa Estar”, ótima parceria com Lulu Santos e Pabllo Vittar, e a eletrônica “So Special” encerram a viagem. Liniker chegou aos grandes centros urbanos, noturnos. Ela também tem raízes ali e agora vai relaxar. Take your time. Ou como diz o ditado, “o sofrimento passa assim como se apaga a nódoa de caju”.