Finda a exibição do novo filme de Ryûsuke Hamaguchi, O Mal Não Existe, me veio na cabeça um posicionamento do crítico e pesquisador de cinema Tag Gallagher, acerca do que ele chama “Filmes de protesto”: “Para simplificar, há talvez dois tipos de filmes de “protesto”. ‘Glória Feita de Sangue’ e ‘Sangue de Heróis’. O primeiro coloca chapéus pretos nos vilões e faz com que você se sinta bem ao dizer repetidamente que o mal é o mal e, assim, você sai do filme regozijando-se com sua própria virtude sublime. O segundo continua mudando os chapéus, confundindo as questões, mostrando que pessoas boas podem ser más e pessoas más podem ser boas, e faz com que você se envolva, fique irritado e pense.”
A obra do diretor japonês certamente se encaixa no segundo tipo mesmo que eu, particularmente, relute em chamá-lo de “filme de protesto”, termo que convida a ideia de sensações mais fortes e tumultuosas, nada mais distante do que a narrativa apresenta, pois mesmo lidando com um tema atual e urgente, o meio ambiente, seu olhar para os acontecimentos é clínico e metódico. Os primeiros momentos instigam essa sensação por meio da rotina de um dos personagens principais, Takumi (Hitoshi Omika), que calmamente coleta água de uma nascente, enchendo uma série de garrafões, e caminha pela floresta com sua filha Hana (Ryo Nishikawa), conversando sobre a flora do local onde moram, Mizubiki.
Mesmo quando o conflito chega, na forma de uma empresa que quer usar o local para construir um espaço de “glamping”, essencialmente um acampamento de luxo, a calma se mantém, com planos estáticos e duradouros. Quando os dois representantes da empresa, Takahashi (Ryuji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani) conversam com os moradores durante a apresentação do projeto, é fácil querer enxergar o par como “inimigos”, que desejam atrapalhar a estabilidade que os habitantes possuem na relação com o meio ambiente. Mas O Mal Não Existe foge de caracterizações tão simplistas, e reforça isso enquadrando os moradores e os funcionários de modo igual, sem exaltar a indignação dos habitantes ou ridicularizar a inépcia da dupla em apresentar um projeto coerente.
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O roteiro dá um passo além e passa a acompanhar Takahashi e Mayuzumi, meros empregados de uma agência de talentos que criou o projeto de “glamping” para se aproveitar de subsídios do governo. O mesmo olhar cuidadoso para as atividades de Takumi, agora se voltam para os dois, que se revelam genuinamente interessados em resolver as preocupações dos moradores de Mizubiki, mas não possuem poder algum para tal, sendo simples joguetes nas mãos de pessoas mais endinheiradas que ambos.
Essa neutralidade na representação dos personagens não significa que Hamaguchi não identifique os males que cercam a situação. Na apresentação do projeto, por exemplo, a linguagem utilizada deixa claro que o interesse ambiental do projeto é superficial, algo muito comum em projetos supostamente “verdes”, que usam da linguagem da sustentabilidade para se vender, mas estão bem distantes disso. A postura do idealizador disso tudo, um homem que só vemos por meio de uma tela, sinalizando sua distância de todos os acontecimentos, é a de querer fazer tudo o mais rápido possível, e de fazer o mínimo esforço para atender às preocupações dos moradores, pelo menor custo possível, é claro.
Mas essas acusações são menores dentro do que torna O Mal Não Existe uma grande obra. Hamaguchi parte do antagonismo entre capitalismo e meio ambiente para observar como as relações humanas se complicam dentro desse contexto. As melhores intenções se tornam sombrias sob determinada ótica, e as piores se tornam justificáveis. Há um certo desolamento quando o filme conclui, o título do filme se posicionando como uma complicação. Se o mal não existe, o que explica certas crueldades? Diante disso, não há nada a ser feito. Apenas viver com esse questionamento.