Alguns prêmios no mundo do cinema são como chancelas: atestam que um filme é bom e chamam a atenção para a produção. Os prêmios do Festival de Cannes, este gigante europeu quase octogenário, são assim. Por isso, após vencer o prêmio de elenco na mostra Un Certain Regard no ano de 2023, o filme “A Flor do Buriti” entrou de vez no radar dos cinéfilos. Agora ele chega aos cinemas, onde certamente fará uma linda trajetória, tão linda e importante quanto a história que traz.
A flor do buriti é vermelha, nos conta uma canção logo no início do filme. Enquanto os anciãos cantam a canção ao redor de uma fogueira, uma índia está em sua oca sentindo as dores do parto. Dois indiozinhos, um em cima e outro detrás de uma árvore, tentam espantar um boi, ameaça cada vez mais constante. Corta para o título. É assim que a aventura começa… ou será que é assim que termina?
Somos então apresentados a índios que usam sabão de coco para lavar o corpo e os cabelos, e que preferem ir ao supermercado a caçar animais silvestres. Jotàt (Solane Tehtikwyj Krahô) quer que lhe comprem um colchão para dormir bem, o que ela não consegue na rede ancestral. Viajando na carroceria de uma caminhonete, a índia Patpro (Ilda Patpro Krahô) assiste no smartphone a uma fala de Sonia Guajajara frente ao Congresso e faz planos para ir a Brasília numa audiência sobre problemas dos povos indígenas, o Marco Temporal em especial. Patpro é mãe de Jotàt e pede ajuda ao tio, Hyjnõ (Francisco Hyjno Krahô), que fica na guarita na entrada da aldeia impedindo que traficantes de animais saiam de lá contrabandeando espécies da floresta.
Jotàt encontra um velho papel dizendo que em 1969 a FUNAI criou a Guarda Rural Indígena. O paralelo é válido: a situação dos povos originários no governo passado, quando “A Flor do Buriti” foi rodado, era muito semelhante à situação no regime militar. Falso interesse na causa gerava ações “para inglês ver” e havia mais ataques que medidas de proteção. O maior ataque que vimos foi o projeto de lei do Marco Temporal, que já existia há mais de dez anos, mas ganhou força recentemente. Apesar de ter sido considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal – após a manifestação da qual Patpro participa – ele ainda tramita no Congresso.
Patpro diz que ouviu falar que mulheres que viram pajés se tornam ainda mais fortes que os homens pajés. Esta função na hierarquia indígena, em geral destinada aos indivíduos do sexo masculino, também pode ser dispensada às mulheres após ritos de iniciação. Cabe ao pajé – ou à pajé – curar índios doentes e se comunicar com espíritos da natureza e dos antepassados, além de passar adiante os mitos da tribo.
Uma das índias diz que da aldeia é possível sentir o cheiro do gado que o homem branco colocou nas terras indígenas roubadas. As terras que eles ainda têm precisam ser protegidas, pois muitos antepassados morreram para garantir sua posse. O gado passa espantando caças e pássaros, enquanto os fazendeiros só querem saber de expandir suas fazendas, para comprar – e futuramente vender – mais gado. A relação do povo com a terra e os conflitos pela posse desta estiveram desde a gênese do filme no centro de “A Flor do Buriti”, como afirma uma das diretoras, Renée Nader Messora:
“O filme nasce do desejo em pensar a relação dos Krahô com a terra, pensar em como essa relação vai sendo elaborada pela comunidade através dos tempos. As diferentes violências sofridas pelos Krahô nos últimos 100 anos também alavancaram um movimento de cuidado e reivindicação da terra como bem maior, condição primeira para que a comunidade possa viver dignamente e no exercício pleno de sua cultura”.
A voz em off de um índio contando os ataques dos fazendeiros dá à narrativa não apenas cadência, mas status de lenda indígena passada oralmente de geração em geração. É curioso percebermos neste momento que não existe uma palavra na língua indígena que signifique “fazendeiro”, então os índios usam a palavra em português mesmo. Para um corpo estranho, uma palavra também estrangeira basta.
Num determinado momento, surge na tela um pequeno tamanduá, primeiro na brincadeira de Hyjnõ com a filhinha, depois na oca de Patpro. Famosos por comerem formigas, enfiando sua comprida língua no formigueiro em busca de uma refeição, tamanduás também têm unhas compridas, que usam para se defender. Tamanduás vivem na América do Sul e Central, são animais muito resistentes porque precisam de pouca água para sobreviver, e têm hábitos noturnos. São animais em estado de vulnerabilidade, pela expansão da pecuária e da urbanização em seu hábitat natural.
Hyjnõ vai atrás do velho buriti em busca de sabedoria. Ele também rememora um acontecimento: quando um professor levou seus alunos para conhecerem os indígenas. As crianças ficavam tocando nos índios, com ar curioso. Hyjnõ diz que achava que eles faziam isso para se convencerem de que os índios eram como eles, de carne e osso. Para quem não está acostumado com a convivência, o contato com indígenas pode ser levado na base do exotismo.
Para que isso não aconteça no cinema, a solução é fácil: peça para índios filmarem eles mesmos, com seu próprio olhar cuidadoso e em geral muito carinhoso. Por isso, espanta a informação de que “A Flor do Buriti” foi dirigido por um português e uma brasileira. João Salaviza e Renée Nader Messora conseguem filmar os povos indígenas com carinho, mas não com propriedade. Isso é consertado por um roteiro colaborativo, que foi sendo construído enquanto o filme era rodado: além de Salaviza e Nader Messora, assinam o roteiro Patpro, Hyjnõ e Henrique Ihjãc Krahô.
A flor do buriti é vermelha, cor do sangue indígena derramado em uma luta desigual com os fazendeiros que cobiçavam e ainda cobiçam a terra alheia. A história do massacre é contada de pai para filho, para que nunca se esqueçam de quem morreu para que pudessem seguir vivendo ali. E aqui surge o cinema como ferramenta para perpetuar essa história, não apenas para as gerações futuras dos indígenas, mas para todos que se importam com as lutas dos povos originários.