Os Enganados, filme de Saleh, retrata tentativa de refugiados palestinos chegarem ao Kuwait
Ninguém precisa tanto contar sua história quanto o povo palestino. Durante décadas, eles sofreram não apenas com colonização, usurpação de suas terras, epistemicídio sistemático, apartheid e limpeza étnica, como também tiveram sua versão da história negada. Foi para tentar reverter esse cenário que Ghassan Kanafani, em 1963, publicou seu primeiro romance (ou novela para alguns) Homens ao Sol, em que relata a tentativa de três palestinos fugirem para o Kuwait, após o desterro com a invasão sionista.
O contexto da história é: em 1948, durante a chamada Nakba, a catástrofe palestina, 850 mil palestinos foram expulsos de suas terras com a invasão das milícias sionistas e a consequente fundação do estado de Israel. Desses 850 mil, alguns passaram a viver em campos improvisados para refugiados, outros atravessaram os oceanos e vieram para as Américas; outros, tentaram condições de vida em outros países. É o caso desses três personagens.
Acontece que entre 1948 e 1963, muita coisa havia passado e Kanafani resolveu contar a história de seu povo relatando este primeiro momento histórico: a estupefação e a incapacidade de reação diante do ataque israelense. Quase 10 anos depois essa história foi revista pelo cinema e é desse filme que falo hoje: Os enganados (1972).
Os enganados, é um filme de 1972, dirigido por Tewfik Saleh, com elenco de Saleh Kholoki, Abderrahman Alrahy e Thanaa Dibsi. Saleh é um grande diretor egípcio, embora tenha realizado poucos filmes em sua carreira. Seu primeiro filme foi “Beco dos tolos” (1955), co-escrito ao lado do grande Naguib Mahfouz, o egípcio ganhador do Nobel de Literatura.
A história do filme é bastante similar à do livro de Kanafani: três sujeitos buscam atravessar a fronteira até o Kuwait para conseguir uma vida melhor. As três histórias retratam três gerações de palestinos: um mais velho, já entrando no fim da vida, que busca deixar um legado financeiro para seus filhos; um adulto tenta uma saída para os problemas de emprego do Iraque, onde vive refugiado; e um jovem, no começo da vida, que ainda guarda esperanças de ter um futuro melhor em outro lugar.
Na tentativa de atravessar a fronteira, eles começam a lidar com traficantes responsáveis por fazer as travessias dos dois países através do deserto, porém o trio encontra algumas barreiras: ou são deixados no meio do deserto, ou não possuem o dinheiro necessário ou, simplesmente, são incapazes de confiar que conseguirão chegar ao outro lado com vida por aquela via.
Até que conhecem um sujeito que trabalha fazendo transportes de um país ao outro e que oferece uma saída: eles podem atravessar a fronteira com ele, dentro de um caminhão-tanque de água. Após um momento de insegurança, os três topam e embarcam na viagem. Com o calor do deserto escaldante, e a passagem tendo que ser feita necessariamente de dia, o tempo limite que eles podem ficar dentro do tanque é de 6 a 7 minutos, o que dificulta bastante a travessia pelos pontos de passagem e requer bastante precisão.
Porém, o mais precioso do filme está na forma como Saleh contou a história. Enquanto acompanhamos o trajeto e as dificuldades do presente, o diretor vai recortando memórias do passado de cada um daqueles sujeitos, de modo a nos apresentá-los não da perspectiva de quem eram, mas do que os levou até ali. Não é a biografia de cada um que está ali, mas uma cartografia coletiva, um ensaio dialético entre sujeito e comunidade. Nesse caso, pouco importa a história de vida pessoal de cada um deles, mas os atravessamentos deles enquanto desterrados palestinos.
A história é, ao mesmo tempo, similar e diferente das dos outros, mas todas levam ao mesmo ponto: a perda de sua terra, a perda da esperança de retorno, a necessidade de deslocamento para sobrevivência.
No fim da história, uma surpresa: o diretor altera um dos pontos cruciais do livro de Kanafani, o que poderia mudar completamente a interpretação do que aconteceu com o próprio povo palestino. A curiosidade é que Saleh aprovou a mudança antes com Ghassan Kanafani. A ideia dele é que, em 1963, quando o livro foi lançado, eles estavam em um momento histórico na Palestina, já em 1972, quando o filme chegou ao mundo, o momento era outro.
Kanafani e Saleh, do seu jeito, estão tentando inventar uma nova Palestina. Uma Palestina que precisa ser moderna. Uma Palestina que vai precisar ser pensada como nação e que, assim, precisa organizar sua resistência, para garantir a sobrevivência de seu povo diante de uma força que pretende aniquilá-los. E Os Enganados (1973) acabam não sendo tão enganados assim: eles são vítimas da história, uma história que se enganou, uma história que cobra um preço alto demais dos palestinos até hoje.