Conheci César Aira através de um livro que me fez ter uma das maiores viagens literárias: As Noites de Flores, de 2003, que conta a história de um casal de velhinhos aposentados que resolve trabalhar entregando pizza a pé. Foi a primeira vez que li Aira e a primeira vez que entrei em contato com o bairro de Flores que depois reconheceria em muitas de suas outras obras, como no romance Os Fantasmas (1990), que se passa em um prédio em construção e abriga simultaneamente dois grupos de invisibilizados: uma família pobre de zeladores e e um grupo de fantasmas.
Há quem não entenda porque César Aira localiza muitos de seus livros em seu bairro de Buenos Aires ou quem ache que sua literatura é demasiadamente endógena, ou seja, que está sempre voltada para os mesmos minúsculos lugares contando a vida de minúsculas pessoas. Gostaria de saber o que diriam os mesmos de um Machado de Assis cuja vida e literatura estão também quase todas localizadas numa pequena estreita faixa de um Rio de Janeiro em expansão. Esse mesmo Machado que, uma vez fixo em sua terra, soube como ninguém olhar para o resto do mundo.
No caso de Aira o mesmo parece se dar. O seu mau humor com o resto do mundo, sua pouca vontade de dar entrevista e frequentar eventos, reside talvez pelo fascínio que ele tem pelas multiplicidades dos pequenos espaços e pelas histórias dessas pequenas pessoas que passam por seus olhos no não tão grande bairro de Flores. E isso, por si só, já é literatura.
Além disso, desde que li “Como me reí”, livro em que Aira conta um pouco de sua infância, que passei a vê-lo de outro lugar: na obra de 2005, o autor argentino conta que costumeiramente ouve dizer que seus livros fazem os outros rirem, porém ele próprio os acha mundo triste. Ele se pergunta, então, afinal, do que e como ele ri.
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Outra acusação comum ao estilo arenoso de Aira é de que seus livros são excessivamente curtos. Alguns chegam até a dizer que não chegam a ser romances, mas pequenas noveletas que ficam ali entre 80 e 120 páginas. Bom, eu não poderia discordar mais, afinal conheço livros de mais de 500 páginas que não dizem absolutamente nada e poemas de 4, 5 palavras que contém a alquimia da vida. A literatura não é quantificável, só qualificável. Por isso, para começar a resenha fiz uma digressão imensa e quero começar não falando do livro ou do mundo, mas falando de mim.
Eu sei que muitos podem criticar ou discordar, mas um dos meus esportes prediletos é o MMA e sou um assíduo espectador do UFC. Sempre fui interessado, mas nunca tinha prestado tanta atenção, até que descobri nas artes marciais uma beleza que me aproxima muito do sentimento da arte e, no MMA, encontrei talvez uma coisa que a arte não permite: a mistura das artes marciais disputando entre si, é para os olhos de quem ama uma verdadeira celebração de talentos que não tenho.
Eis que, enquanto assistia ao UFC, aproveitei os intervalos da luta para encarar o romance “A Prova”, recém lançado no Brasil pela Editora Fósforo com tradução de Joca Wolff e Paloma Vidal. No intervalo da luta, eu lia as páginas e no intervalo das páginas, eu via a luta.
O romance conta uma história simultaneamente banal e singular. Uma jovem chamada Marcia está andando pela rua no bairro de Flores quando recebe um convite inusitado: “Quer foder?” É assim, inclusive, que Aira inicia o romance. A mesma surpresa que sente o leitor do outro lado do livro é sentida por Marcia, uma menina quieta, quase sem amigos e acima do peso, do lado de dentro.
Ela olha para o lado não convencida de que a frase tenha sido dita para ela, quando ouve novamente:
– Tô falando com você…
– Comigo?
-Quer foder?
O convite vem de duas meninas de estilo alternativo, ou punks como Marcia resolve nomear: Mao e Lenin. Os nomes de líderes comunistas não são explicados e nem parecem conter uma metáfora mais forte, mas guardam os verdadeiros nomes da dupla.
Diante do convite insólito, Marcia resolve escapar, mas se vê seduzida pela trama que nunca lhe havia passado pela cabeça: ela era virgem e mal pensava em sexo e, de repente, lhe é oferecido não só sexo, mas sexo inusual: com mulheres e duas ao mesmo tempo.
A violência pode ser uma prova de amor?
Na tentativa de desvendar o que pensam Mao e Lenin, principalmente, Mao, Marcia acompanha as duas pelo bairro fazendo-lhes perguntas e vendo suas atitudes altivas diante do mundo. Até que em um certo momento, Mao tenta provar à Marcia que seu convite é sério e decide apresentar-lhe uma prova. Uma prova de amor. Neste momento o romance sofre uma guinada e entra em um absurdo ciclo de violência cuja verossimilhança, se não escapa, nos faz flertar com um fantástico bastante realista (totalmente diferente do realismo fantástico).
Seja um mundo nietzschiano ou seja um mundo distópico em sua essência, Aira nos coloca em “A Prova” diante da potência violenta do ser humano que se diz agir em nome do amor. Passamos pelos efeitos de uma Salomé involuntária aos ímpetos de combustão, numa trama que guardo para não tirar de você, leitor, o espanto que eu mesmo tive.
E assim fiquei eu: como um voyer da violência do mundo diante dessa promessa de amor e diante de uma Marcia que olhava tudo atônita. Que revolução é essa que parece tão sonhada quanto proibida? Que desejo é esse que temos de destruir nos poucos momentos que nos sobra de repetição? Como não ser Marcia, mas também não ser Mao?
Lembre-se que eu lia o romance enquanto via o UFC. O espanto era tamanho que, em determinado momento, fiquei com a clara sensação de que o livro, aos poucos, ia se tornando até mais violento que o UFC.
E se tornou mesmo. O UFC tem regras claras, tem juiz, tempo. A literatura não. Principalmente a de César Aira, e agora temos uma prova. Uma potência sem fim de uma violência infinita dentro da gente. Por isso que a literatura é sempre uma das ferramentas mais perigosas.
Ou você já viu algum governo censurar uma luta?