Afonso Cruz é um dos nomes representativos da literatura contemporânea portuguesa. Além de escritor, é ilustrador, cineasta e músico. Estudou na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e no Instituto Superior de Artes Plásticas de Madeira. Em 2010, venceu o Grande Prêmio de Conto Camilo Castelo Branco com Enciclopédia da Estória Universal (2009). Dois anos depois, conquistou o Prêmio da União Europeia de Literatura com A boneca de Kokoschka (2010). Publicou mais de 30 livros, entre romances, contos, ensaios, teatro, não ficção, álbuns ilustrados e ainda uma enciclopédia inventada, que conta com 7 volumes. Várias obras foram traduzidas para mais de 20 idiomas. Estão entre os títulos publicados mais conhecidos: Os livros que devoraram o meu pai (2011), Para onde vão os guarda-chuvas (2013), Vamos comprar um poeta (2016) e Nem todas as baleias voam (2016).
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O vício dos livros, publicado pela Editora Dublinense, no Brasil, em 2024, reúne mais de 30 ensaios curtos que tratam sobre a prática da leitura e a relação que os leitores estabelecem com os livros, além de contar com algumas ilustrações do próprio autor. Os textos apresentam relatos históricos, curiosidades literárias, reflexões e memórias pessoais, evidenciando, sobretudo, sua paixão pelos livros. Para isso, recorre a diversos escritores e obras como Kafka, Mário Quintana, Rilke, Borges, Huxley e outros. Entre tantas finalidades e benefícios, ele destaca o entretenimento, o ato de descoberta e de experienciar outras vidas, as transformações das relações humanas, o conhecimento e a transmissão do saber, a ampliação da cultura, o exercício da empatia e da compreensão do outro.
Confira as citações selecionadas:
Ao contrário de tantos outros vícios, o dos livros é, na verdade, uma virtude. De facto, ter livros não é o mesmo que, por exemplo, ter dinheiro. Ter livros é como ter amigos, ter dinheiro é como ter com que pagar a amigos.
Além dos tradicionais cinco sentidos, o mundo que vivenciamos exige mais um sentido, que é, na verdade, um potenciador e motor dos demais. É um sentido porque nos permite perceber o mundo que nos rodeia, destruindo a banalidade, a massa indiferenciada que é o barro de tudo: chamemos-lhe sentido poético. Não importa se com a poesia revelamos o horror ou o belo ou o tédio ou a vastidão do cosmos ou as nervuras de uma folha seca, mas, sim, se realizamos a taumaturgia de acordar o mundo.
[…]os leitores ouvem muitas vezes frases como “gostaria muito, mas não tenho tempo para ler”, “adoro ler, mas o trabalho não deixa”, “costumava ler, mas as responsabilidades agora são muitas”, etc. Por vezes, estes argumentos são verdadeiros, mas, habitualmente, não passam de desculpas. Qualquer leitor apaixonado encontra um momento entre trabalhos e tarefas para abrir um livro, caminha enquanto lê, lê nos transportes, lê enquanto almoça, lê na casa de banho, lê antes de dormir.
A leitura é um processo lento e muitas vezes ciumento, possessivo. O livro pede a nossa atenção total e exclusiva. Outras atividades não têm tantos ciúmes e permitem-nos realizar várias ao mesmo tempo (cantarolar, dançar, pensar e cozinhar, por exemplo, podem coabitar na mesma pessoa e no mesmo espaço e tempo). Muitas vezes, ler exige silêncio e recolhimento (precisamente a antítese de outras atividades lúdicas, talvez, aquelas de maior adesão) e tende a subtrair-se a qualquer gregarismo. A dedicação que um livro deseja para si tem uma gratificação menos imediata do que outras formas de fruição artística ou entretenimento.
Por vezes, os livros que não são lidos podem assumir um ar acusador. Muitos leitores sentem alguma culpa quando olham para pilhas de livros por ler. No meu caso, considero estes livros uma possibilidade de ser livre: não tenho apenas um livro para ler, tenho muitos, e isso permite-me escolher o próximo (dentro de um espectro variado de possibilidades). No fundo, concordo com Jules Renard quando escreveu em Notas sobre el oficio de escribir: “Quando penso em todos os livros que tenho para ler, tenho a certeza de ainda ser feliz”
Até para roubar é preciso cultura; sem ela, não se rouba com eficácia. O ignorante nunca saberá o que vale a pena roubar. Isso é tão válido para o ladrão de rua como para quem queira levar uma vida honesta, seja especulador, lojista, político, taxista ou arquiteto. Qualquer bom profissional precisa de cultura, e um ladrão que se preze não será exceção. Aliás, era possivelmente por isso que aqueles ladrões estavam na rua; se soubessem um pouco mais, estariam sentados na administração de um banco. Mas há uma contradição evidente quando se trata de fazer valer este argumento: é muito difícil, senão impossível, explicar a um néscio a importância da cultura, pois ele não tem cultura para perceber a falta dela.
A cultura é realmente uma ameaça. Não me lembro de regimes autoritários que tenham inaugurado a sua governação sem ter perseguido artistas e censurado ou destruído obras de arte.
É possível organizar uma biblioteca de modo a representar um ser humano: os livros que lemos construíram-nos, constroem-nos, construir-nos-ão. O modo como os juntamos denuncia-nos: os preferidos todos juntos, ou a dialogarem com os inacabados, com os por abrir, tentando fazê-los melhores; poetas ao lado de cientistas ou, pelo contrário, na prateleira mais afastada. Há também que contar com a desordem e a surpresa que ela permite. Arnoldo Kraus escreveu, em Apología del libro: “A minha entropia contagiou os meus livros. Apesar de não deixar de me incomodar, é bem-vinda. Ler o que não pretendia ler nesse momento, reler um livro colocado no sítio onde devia estar o livro que procuramos possibilita encontros inesperados. É a lei do acaso: Deus inventou-o para explicar determinadas situações, ou o acaso inventou Deus para facilitar a aceitação do inexplicável?”.
Os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor.
Os livros, dependendo da sua qualidade, têm características perturbadoras e inovadoras. Quando não acontece, deixam muito a desejar. Como antes disse, um bom livro dirige-se ao futuro de cada leitor e não ao seu presente. Quando abrimos um livro, disse Graham Greene, abrimos um futuro.
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