Romance de terror brasileiro situado em prédio degradado de grande cidade, “Se perder numa enchente” é a grata alegria de 2024
Esta resenha, adianto já, vai ser hiperbólica, e peço perdão aos leitores por isso. É porque acredito que com “Se perder numa enchente” nasce algo de diferente na literatura brasileira. Nunca fui e acredito que nunca serei um grande fã da literatura especulativa ou do insólito, mas esse romance ultrapassou todas as medidas que tinha para o gênero;dá orgulho de dizer que esse livro é nacional e foi escrito aqui pertinho de mim, na vizinha Niterói. Mas…vamos falar do livro?
![](https://jornalnota.com.br/wp-content/uploads/2024/06/IMG_20240606_222751-1-650x1024.jpg)
“Se perder numa enchente” é um romance de Leo Peccatu, publicado no final de dezembro de 2023 pela Editora Primata. Já começo elogiando a biografia da orelha do autor que, ao invés de empilhar formações e títulos, resolve dizer que “cultiva histórias e um amor platônico por gambás”, o que me interessa muito mais do que saber se ele é pai ou se tem faculdade.
Mas o melhor mesmo está no romance, que conta a história de uma jovem chamada Jade que decide alugar um apartamento em um dos edifícios mais degradados do centro de Niterói, um prédio quase em ruínas chamado Ed. Scolonpra, 369. Ela está vivendo o luto da perda de um irmão durante uma enchente e, por segundos, não ter conseguido salvá-lo da enxurrada, então resolve se abrigar em um lugar onde pouco pode ser incomodada.
De traços rebeldes, escritora em crise, Jade acredita se desdobrar e projeta o seu lado interno sombrio, triste, enlutado e conturbado no prédio que possui poucos vizinhos, desconfiados e arredios demais para se preocupar com o que se passa do lado de fora dos seus apartamentos. Assim, ela descobre um mundo à parte: um andar inteiro permanece sempre às escuras, as escadas escondem medos para além do exterior e o elevador pouco confiável poderá decidir se sairá ou não de casa.
Acontece que, no primeiro dia, o que parece ruim logo piora,: sua perda está também no restante do prédio, que começa a se manifestar em seres, fenômenos, aparições estranhas (fantasmas?) que encarceram todos dentro do Scolonpra e colocam em risco suas vidas.
Em termos de forma e estrutura, Leo Peccatu faz algumas escolhas bastante inteligentes que compõem o aspecto geral da obra. A primeira delas é um recurso muito comum ao mestre do terror Stephen King: a escolha de escrever o romance em um espaço físico específico, marcado e delimitado. Isso acontece com King, por exemplo, no hotel de “O Iluminado”, e até em “Christine”, o carro amaldiçoado. Apesar disso, a obra de Leo está mais para uma Mariana Enriquez que, inclusive, é citada no livro com “As coisas que perdemos no fogo”.
Além disso, no caso de Leo, a escolha pelo Ed. Scolonpra garante a ele algumas coisas essenciais: transformar um espaço físico específico em um ambiente cujas regras do mundo dito normal são suspensas por uma nova ordem que ele mesmo vai construir. Assim, ao invés de construir um novo mundo, ele delimita a criação a este ambiente, como se ele fosse um microcosmos tensionado e claustrofóbico.
O interessante dessa escolha é que nos cria uma sensação de familiaridade, ou seja, sabemos se tratar de um prédio que existe no meio do caos urbano, mas ao mesmo tempo é também um espaço de singularidade, uma troca entre estranho e familiar que se traz através do constante movimento entre essas duas forças, afinal: “Nada é fixo, tudo é fluxo…e refluxo”.
Leia também: “Dossiê Macabro – Insetos”: O assustador mundo dos insetos por autores nacionais
![](https://jornalnota.com.br/wp-content/uploads/2024/06/Copia-de-Montagens-30-1024x576.jpg)
O escritor, no caso Leo Peccatu e o narrador (ou narradora) que vamos conhecendo com o correr do livro, se torna uma espécie de demiurgo, alquimista que controla tudo ou, ainda, uma espécie de escriba – escritor e escrita:
“O Escriba, a um só tempo escritor e escrita, não pode ser tocado. O personagem de uma narrativa pode matar o autor? O mundo é um livro e este prédio é a nota de rodapé que ninguém lê.”
A escolha de uma personagem mulher também cria uma série de atravessamentos curiosos para a obra. De um lado, a independência da jovem, que visa encontrar um ambiente para ficar sozinha; de outro, a própria fragilidade do gênero diante de um mundo hostil para com as mulheres. A constante ameaça física de outros homens, o medo de ter seu apartamento invadido e a atenção externa que recebe por ser uma mulher naquele ambiente amplificam a tensão e o medo.
Sem contar que o próprio trauma vivido por Jade, o de perder o irmão, ressoa também de uma perspectiva de gênero: a mulher, aquela que se supõe que deveria cuidar, é agora justamente aquela que coloca o próprio corpo em risco para morar neste prédio degradado.
![](https://jornalnota.com.br/wp-content/uploads/2024/06/image-15.png)
No decorrer de “Se perder numa enchente”, Jade vai encontrando uma série de outros personagens curiosos que merecem destaque: Dona Funesta, uma senhora que vive no andar sem luzes e serve a todos um pedaço de torta e um chá. Segundo consta, ela se diz a neta do dono do prédio e, assim, a síndica e mais antiga residente de lá; Gregória Helena, que espelha e reduplica a figura de Jade, uma menina que vivera algum trauma na sua infância, que serve pastéis de diversos sabores e faz amizade com os seres estranhos do condomínio; Ernâni, um corretor de imóveis medroso e covarde, que é responsável por levar novos clientes para o prédio; Géssico, um senhor de idade cuja história guarda mais segredos do que o próprio céu e a terra.
Porém, tais personagens seriam apenas figuras comuns se não fossem vistas através da composição do espaço que é o Scolompra 369, um dos ambientes mais familiares e assustadores que conheci ao ler um livro. É por isso que digo que foi com brutal surpresa e alegria que pude conhecer a escrita de Leo Peccatu. E o que mais radical há na obra é a própria consciência do papel da escrita diante de um mundo que, como o edifício, é brutal e desalentador. Cabe a nós, então, contar, narrar e viver histórias:
“O segredo da vida eterna está no domínio das histórias. Quem domina a própria história, pode postergar seu encerramento a perder de vista. Adiar o “the end”. Histórias são fontes inesgotáveis de vida.”
Sem dever nada aos grandes thrillers de terror que são publicados na gringa, Leo construiu uma obra que apavora e fascina, que inventa mundo sem ser pernóstica e que sabe medir o jogo de linguagem para que sua criação alce voos, mas se crave diante de nós. Sem dúvida, uma das melhores obras que li do gênero e que vou indicar pra todo mundo.
Compre o livro aqui!