Primeiro romance da nigeriana Chinelo Okparanta fala sobre o amor de duas jovens mulheres em meio à guerra e fundamentalismos religiosos
Como viver o amor em um mundo no qual predomina a linguagem da guerra? Talvez essa seja a pergunta que move Chinelo Okparanta em “Sob as Árvores de Udala”, na qual a escritora conta a história de Ijeoma, uma jovem nigeriana que vê sua vida e de sua família atravessadas pelas muitas facetas da violência.
Após uma grande perda familiar, Ijeoma se vê obrigada a sair de sua terra natal e é levada pela mãe à casa de um antigo amigo de seu pai, um professor. Buscando proteger a filha da guerra, mas também movida pela impossibilidade de dar conta de cuidar dela naquele contexto, a mãe acredita estar deixando a filha sob cuidados confiáveis, mas sua estadia na casa do professor e sua esposa se mostra mais um espaço no qual a violência impera.
A história se passa no contexto da Guerra Nigéria-Biafra, ocorrida entre 1967 e 1970, quando províncias do sudeste da Nigéria iniciam um movimento separatista para criar a República do Biafra. É no contexto da iminente derrota do Biafra que Ijeoma vê todas as suas referências se desfazerem diante de seus olhos.
Porque uma nova mudança se aproximava e eu me via forçada a reconhecer que o limite da minha imaginação não era de forma alguma o limite do mundo.
Deslocada e sozinha, diante de tais forças brutais, Ijeoma encontra outro tipo de força, ao mesmo tempo mais forte e mais frágil, quando conhece Amina e se apaixona por ela. A descoberta do amor por duas jovens que buscam conforto e acolhimento diante de lutos e lutas se vê atravessada pela vergonha e pelo medo quando a relação é descoberta e lida como imoral e proibida – não somente por serem duas mulheres, mas por pertencerem a grupos étnicos distintos.
O contexto histórico no qual se passa a história não poderia ser chamado de “pano de fundo”, sob o risco de se reduzir sua importância para a trama. Em uma Nigéria que vive uma guerra civil, com disputas étnicas que estruturam as relações sociais e fundamentalismos religiosos que pautam a própria ideia de “família”, tais condições se constituem como parte do romance – são as condições de possibilidade para a existência de Ijeoma, bem como da impossibilidade de se expressar e viver como é. De certo modo, são, assim, também personagem da história.
Após retornar para os cuidados da mãe, a relação entre as duas, que já era frágil, se vê ainda mais abalada quando a mãe inicia sessões diárias de “educação religiosa” para fazer com que sua filha “se livre” daquilo que ela considera como “pecado”: o amor por Amina. Assustada, Ijeoma suporta as intervenções religiosas, buscando também se compreender e dar sentido à experiência que teve com Amina e consigo mesma.
Felicidade era como ela chamava. Mas eu sabia que felicidade era uma palavra como loucura, como doença, como confusão, como perda, como morte. Mesmo como bonito ou puro ou angelical ou Deus. Felicidade era uma palavra que representava uma ideia mais profunda, inexplicável e pesada, o tipo de ideia que vai e volta entre dois mundos diferentes.
Uma das características mais marcantes – e brilhantes – da escrita de Chinelo Okparanta é que mesmo diante de relatos brutais de violência psicológica LGBTfóbica, a autora é capaz de construir personagens complexas, densas, ambivalentes, sobre as quais não é possível chegar a uma leitura fechada e reducionista. Isso se dá especialmente com a mãe de Ijeoma e a relação entre as duas.
Trata-se de uma habilidade impressionante e necessária, que convida o(a) leitor(a), diante da violência, a fazer uso de quaisquer outras linguagens que não aquela própria da violência, que simplifica e reduz o outro e a diferença a algo que se pode simplesmente descartar. É um exercício ousado e, para quem lê desafiador, porém talvez seja a mais potente ferramenta para fazer frente à opressão.
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A história se desenrola de modo que acompanhamos o crescimento de Ijeoma e a metamorfose dos desafios que a acompanham em um contexto marcado por disputas étnicas, preconceito e fundamentalismos. Desde suas experiências escolares até a vida adulta, seguimos atentos(as) aos caminhos de Ijeoma, que busca encontrar formas de, mais do que sobreviver, viver, acima de tudo, sendo quem é.
Uzo. Era o tipo de nome que eu gostaria de dobrar e segurar na minha mão, se nomes pudessem ser dobrados e guardados dessa forma. De modo que, se algum dia eu me perdesse, tudo o que teria de fazer seria abrir a palma da mão e permitir que o nome, como a luz de uma tocha, me mostrasse o caminho.
Chinelo Okparanta publicou inúmeros contos e ensaios, mas seu primeiro romance foi “Sob as Árvores de Udalas” – que já lhe rendeu o prêmio Lambda Literary Award na categoria “ficção lésbica” em 2016.
A edição primorosa da Kapulana Editora, responsável por trazer alguns dos mais importantes títulos da literatura africana para o Brasil, conta com a tradução cuidadosa de Carolina Kuhn Facchin, que traz notas de rodapé para explicar termos e práticas nigerianos e que apresenta os textos do original quando necessário. É importante chamar a atenção para a importância do trabalho da editora, que em edições ao mesmo tempo robustas e acessíveis, tem possibilitado a ampliação do debate racial e social através da literatura.
“Sob as Árvores de Udalas” é um livro essencial – além de um marco importantíssimo na literatura LGBT+, que aborda com sensibilidade ímpar a experiência lésbica, trata-se de uma obra que deve ser lida por toda e qualquer pessoa que busque construir um mundo no qual seja possível ser, viver e amar livre de preconceitos e violências.