Distanciando-se bastante da realidade distópica de Fahrenheit 451, obra que geralmente é prontamente associada ao autor, Ray Bradbury passou a destrinchar Hollywood através de romances policiais que, quando unidos, resultaram na Trilogia de Hollywood. Dono de uma estrela na calçada da fama e também roteirista, Bradbury começou seu caminho pelas ruas do cinema quando adolescente, em uma época que ficava perambulando de skate pelas ruas de Hollywood na tentativa de encontrar alguma atriz ou ator (uma característica que também encontraremos no narrador e protagonista de um dos livros da Trilogia que menciono).
O autor iniciou a escrita desse projeto em meados dos anos 90, quando finalizou o primeiro dos três volumes, A morte é um negócio solitário (1985). Cinco anos depois, Bradbury publica Cemitério de lunáticos, responsável por conduzir o leitor ao enfrentamento dos podres que sustentavam todo o aparente glamour hollywoodiano. O interessante dessas duas leituras é que passamos a ter contato com um lado de Bradbury que poucos conhecem, já que a maioria dos leitores tende a achar que ficção é a única característica que assola seus escritos.
Assim, arrisco dizer que a Trilogia de Hollywood será apreciada não apenas por aqueles que já têm o escritor norte-americano em suas estantes e têm ciência de seu riquíssimo universo literário. A Trilogia será igualmente apreciada por novos leitores, bem como por aqueles que conhecem seus textos ficcionais, e, sobretudo, por aqueles que gostam de se aprofundar no lado obscuro de Hollywood.
Cemitério de lunáticos e os mistérios degradantes
Para a alegria de muitos, a Biblioteca Azul, selo da Globo Livros, é responsável por trazer ao Brasil traduções impecáveis das tantas obras de Bradbury. Nos últimos anos, a editora trouxe As crônicas marcianas (tradução por Ana Ban), por exemplo, uma coletânea de contos ficcionais; além disso, trouxe um livro extremamente querido pelos fãs de Fahrenheit 451 (também publicado pela Biblioteca Azul sob tradução de Cid Knipel), a também antologia de contos Prazer em queimar: histórias de Fahrenheit 451 (tradução por Antonio Xerxenesky e Bruno Mattos).
O interessante é que a Biblioteca Azul também estendeu seu trabalho de divulgação de Bradbury para além de sua ficção, e a Trilogia de Hollywood é um belíssimo exemplo dessa marcação. O primeiro volume, A morte é um negócio solitário (tradução por Samir Machado de Machado), foi publicado em 2023, e tivemos a felicidade de não precisar esperar muito tempo para termos o segundo volume, Cemitério de lunáticos (tradução de Érico Assis), já que a obra chegou às nossas mãos no início de 2024.
Cemitério de lunáticos é guiado por um narrador e protagonista sem nome, que, apesar de um verdadeiro apaixonado pelo trabalho e pela Maximus Filmes, para qual escrevia roteiros, passa a entender que havia muito a ser bisbilhotado por baixo dos panos da tão amada produtora. Sua paixão pelo cinema vinha de muito cedo: bem como Bradbury, esse protagonista era um jovem fissurado por Hollywood, e passava os momentos vagos nos portões da produtora, esperando não apenas pelos ídolos cinematográficos, mas também por James Charles Arbuthnot, então diretor da empresa — vale mencionar que Arbuthnot falecera anos consideravelmente anteriores ao início do trabalho do protagonista como roteirista.
É interessante pontuar uma característica fundamental da Maximus Filmes, algo que, inclusive, fomentou ainda mais o meu desejo para conhecer o livro: a produtora simplesmente dividia parede com um verdadeiro cemitério, um lugar mórbido que nem os melhores cenógrafos poderiam compor. E é justamente essa “divisão de território” que dá início aos episódios bizarros tramados em Cemitério de lunáticos. A magia de seu trabalho é drasticamente interrompida pelas consequências de um bilhete bastante curioso que recebe na véspera do Halloween de 1953. Nele dizia:
“Parque Green Glades. Dia das Bruxas.
Hoje, meia-noite.
Muro central, fundos.
P.S: Uma grande revelação o aguarda. Matéria-prima para um best-seller ou para um roteiro soberbo. Não perca!”
Apesar de não muito corajoso, o protagonista não deixa de seguir seu instinto curioso e acata as orientações que lhe são dadas no mistério bilhete. É verdade que esse recado já instiga o leitor e o deixa com uma sensação de seguir a leitura até que esteja satisfeito, mas o que se segue é ainda mais perturbador: ao visitar o cemitério, o narrador se depara com um homem escorado numa escada encostada no muro do fundo da Maximus Filmes.
Leia também: Leituras #65: Fahrenheit 451, de Ray Bradbury
Pior ainda: o tal homem cai no chão, entre as lápides e diante da conturbada escuridão do mundo dos mortos. Parando para olhá-lo, logo descobre que o homem estava, na verdade, morto. E ainda pior: era o rosto de James Charles Arbuthnot, o diretor da produtora da época de sua adolescência; James Charles Arbuthnot, que havia falecido em um trágico acidente anos antes daquele encontro aterrador.
Ainda que se espere que o Halloween seja a noite mais assustadora do ano, não é o que acontecerá para o protagonista, que se alia a seu melhor amigo, que também trabalhava no estúdio, Roy Holdstrom. Diferentemente do narrador, Roy se mostra um personagem mais duro na queda, um sujeito que compra a briga também em nome da curiosidade — e acabam ganhando a consciência de que a Maximus Filmes e Hollywood eram mais dramáticos do que qualquer roteiro e figura que construíssem juntos. Nos episódios que seguem o bilhete misterioso, acompanhamos acontecimentos extremamente perturbadores, como mortes para acobertar segredos do estúdio e encontros com pessoas inusitadas — ainda que muitos dos diálogos sejam cômicos e tirem risadas dos leitores.
Hollywood Forever Cemetery
Mas e se de fato existisse um cemitério que dividisse parede com uma produtora de filmes? Pode até parecer que essa ideia é coisa de narrativa fantasiosa, mas o cemitério Hollywood Forever, fundado em 1899, nos mostra o contrário!
Dividindo espaço com a Paramount e com a RKO Pictures, o cemitério Hollywood Forever é conhecido por ser a casa do pós-morte de inúmeros artistas consagrados, como Johnny Ramone, guitarrista e integrante da banda Ramones; Hattie McDaniel, a primeira atriz negra a ganhar um Oscar de atriz coadjuvante por conta do filme E o vento levou; e até um singelo monumento dedicado a Toto, o cachorrinho de O Mágico de Oz, de 1939.
É curioso que muitas narrativas de Ray Bradbury parecem fantásticas e desprendidas da realidade quando as lemos em suas leituras, mas basta que olhemos mais de perto para percebermos que são, na verdade, muito plausíveis e nada distantes dos fatos que vivemos.