Toda poesia é uma investigação. O que nem sempre temos é o crime. Pelo contrário, a investigação da poesia é, via de regra, pelo inaparente, pelo ínfimo, pelo que não se faz voz, pelo que passa inadvertido pelas passagens do tempo. Se a poesia é realmente, como diria Leminski, um “inutensílio”, ou seja, o estado das coisas que não tem utilidade para nada, Thaís Campolina vai investigar essas coisas em sua obra Eu investigo qualquer coisa sem registro.
Eu investigo qualquer coisa sem registro é um pequeno mas robusto livro de poemas de Thaís Campolina, poeta mineira de Divinópolis, lançado pela Crivo Editorial e vencedor do Prêmio Poesia Incrível 2021. Dividido em 4 partes, o livro simula uma espécie de investigação criminal, compondo blocos como “cenário”, “testemunhas”, autoria”, “tempo e ação”. Porém, aqui, o que se investiga não é necessariamente a materialidade de um crime, mas a própria matéria da poesia que se curva para os maiores pormenores da vida.
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No decorrer das 72 páginas, Thaís vai nos dando pistas sobre seu procedimento de escrita que passa por cupins, filtros de barro, camas box e até uma possível abelha assassina. Em um dos primeiros poemas do livro, Serra do Curral, diz:
“estruturas firmes
ruínas habitadas
dinâmicas ao tempo
se deterioram
e são deterioradas
os cupins são grandes arquitetos”
A poesia forasteira, como ela própria faz questão de dizer de si, parece ter uma certa inveja da natureza que faz poesia sem se dar conta de sua tarefa, enquanto habita ruínas de suas estruturas. Os cupins, poetas do silêncio, atualizam o procedimento poético que a palavra talvez não seja capaz de assumir.
Para isso, um dos conceitos essenciais de Eu investigo qualquer coisa sem registro é o de dobra. Conceito cunhado por Gilles Deleuze, através da obra de Leibniz atravessada pelo barroco, a dobra é uma tentativa de encontrar linhas de fuga para o pensamento dialético de tensão, luta e síntese. A dobra, ao contrário, é a possibilidade infinita de que uma partícula mínima de tudo que existe se dobre dobrando outra coisa. Diz Deleuze:
“Sempre existe uma dobra na dobra, como também uma caverna na caverna. A menor unidade da matéria, o menor elemento, é a dobra, não o ponto, que nunca é uma parte, e sim uma simples extremidade da linha”.
No poema Dobradura, Thaís sai em busca dessa partícula “atrás de uma promessa tão bonita”, entre um carro que trafega pela linha do trânsito e um imaginário tsuru:
“escrevo, recordo
dobro a folha
e crio um barquinho (…)
o papel se foi
mas o que foi escrito
ainda não. (…)
tsuru ou avião
só existem se uma mão
dobrar, dobrar e dobrar”
Em alguns poemas do livro, inclusive, nos dá vontade de abrir outras dobras e brincar, como no caso da dupla “Como produzir sua própria criatura / Como se tornar sua própria criatura”. Após ler os poemas, nos dá vontade de lê-los não como foi proposto, mas jogando com um verso de cada um por vez: “providencie papel machê e imaginação / mude o visual”.
É que depois que o jogo de dobras e desdobras poéticas se instaura, ler se torna também parte da poética de investigação do brincar. Mesmo quando poema trata de temas seríssimos como a violência contra a mulher, como em “Uma história partida ao meio”, o próprio poema pede uma dobra de si próprio:
“um safanão
diante do não
outro
corretivo futuro”
que traz consigo um epílogo na página seguinte:
“estar suja de sangue
me incrimina e alivia
esse gosto de ferro na boca é o sabor da legítima defesa”
É muito feliz ver que Thaís tenha encontrado na poesia, essa coisa “sonolenta” e com “bafo matinal”, um ponto tão singelo para que pudesse falar das coisas. Em um mundo no qual a poesia tem sido tão utilizada a serviço de algo, uma poesia que não é, mas que se volta para, é potente demais encontrar uma poética que se pretende a procura de um mundo que não se conta e não se vê e vai do ínfimo ao infinito.
Desafio você a ler Eu investigo qualquer coisa sem registro e não querer, também, ser um Sherlock Holmes do mundo ao lado de Thaís Campolina.
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