Quinto livro da coleção Marguerite Duras, publicada pela Relicário Edições, sob organização de Luciene Guimarães de Oliveira e com tradução de Adriana Lisboa, O arrebatamento de Lol V. Stein traz, como de costume na literatura durassiana, uma personagem inacabada — melhor dizendo: interrompida. Sob o olhar de um homem a princípio desconhecido e que não se identifica para o leitor, acompanhamos a protagonista em seus anos juvenis. Era, nesses tempos amenos, Lola Valérie Stein, noiva de Michael Richardson; era Lola Valérie Stein, que dançava no pátio do colégio com sua confidente Tatiana.
O ponto de virada na trajetória de Lola não demora a aparecer. É logo no primeiro capítulo que descobrimos o que ocorreu com Lola para que ela se transformasse em Lol V. Stein — o que é um bálsamo para os que gostam das descrições e devaneios na literatura de Duras, já que o episódio desencadeador, posto no início, é seguido por cento e tantas páginas de resolução. Haverá, então, espaço para que Lola seja devidamente destrinchada.
Nesse tal divisor de águas, Lola está em um baile com seu noivo, que é também arrebatado, mas pelo desejo gritante e ensurdecedor por Anne-Marie Stretter, uma mulher mais velha, descrita quase como uma femme fatale.
É essa ocasião que vai paulatinamente apagando Lola de si mesma. Lola é, ao que parece, arrebatada por seu próprio trauma: primeiro parece se desconectar do tempo presente ao longo do baile, onde, por fim, desmaia; depois passa a peregrinar pela cidade, perdendo-se também de forma geográfica. Sua identidade se desfaz de tal forma após esse baque, que seu próprio nome se altera: perdendo algumas letras e ganhando abreviações, Lola passa a ser Lol V. Stein. A força dessa mudança de nome é gigantesca, já que é ele que também nos define de certa maneira, que nos identifica no meio de uma multidão de outras identidades. Quando seu nome é alterado, os efeitos do trauma se desdobram de forma a transbordar: afeta seus movimentos, seu corpo, seu nome.
A questão traumática que parte da ocasião do baile não nasce do ciúme pela ânsia excitante daquele novo casal; ao contrário, Lol sente que observar a união dos dois ao longo do evento faria com que ela pertencesse àquilo. O que a traumatiza é, na verdade, perceber que, ao final daquela noite, o casal partiria e não mais poderia participar indiretamente daquela relação. A semente da observação passa a ser semeada a partir dali, e, aos poucos, se emaranha em sua personalidade. Tanto é que, anos após o trauma que dilacerou todos os traços de sua identidade, Lol persegue, fica à espreita e acompanha os passos de figuras marcantes de seu passado.
Porém, ainda que esse funcionamento seja inconsciente, é significativo. Quando revisita, em seus pensamentos, a ocasião do baile após todos aqueles anos, Lol revira, retoma e ressignifica o episódio traumático. Em determinada parte da narrativa há um trecho especialmente sensível sobre essa atitude automática: “E, naquele recinto aberto apenas ao seu olhar, recomeça o passado, ordena-o, a sua verdadeira casa, arruma-o. Uma obcecada, disse Tatiana; devia pensar sempre na mesma coisa. […] Vê cada vez com maior precisão e clareza o que quer ver. O que está reconstruindo é o fim do mundo.” [p. 64-65]
Não é por acaso que Jacques Lacan tece elogios à escrita de Duras, que traduz brilhantemente os traços do trauma na formação de alguém. Com o texto de apoio final da edição, um posfácio escrito pelo próprio Lacan em homenagem à obra, o leitor desacostumado com a mescla entre literatura e psicanálise poderá entender como a construção de O arrebatamento do Lol V. Stein é uma extensão exemplar do funcionamento da psiquê humana.
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As lacunas nas personagens de Marguerite Duras
Não é apenas em O arrebatamento de Lol V. Stein que Duras nos apresenta a uma personagem com identidade dilacerada. Artista de múltiplas artes, a autora era também dramaturga, e é na peça Savannah Bay que veremos sob os holofotes um drama lacunar que conduz mulheres igualmente interrompidas. Assim como Lol, Madalena, uma mulher em seus anos mais maduros que está na cena do texto teatral mencionado, é também interrompida — em seu caso, porém, pela memória. Madalena é uma atriz que já não se recorda de seus anos de atuação, mas se lembra de Savannah Bay, para onde retorna através de lembranças fragmentadas que a conduzem para uma melancolia também típica de Duras.
No início da edição de 1982 de Savannah Bay, que chegou ao Brasil com tradução inédita por Angela Leite Lopes pela Temporal Editora, Marguerite Duras escreve: “Você não sabe mais quem você é, quem você foi, você sabe que você representou, você não sabe mais o que representou […]. Você é a atriz de teatro, o esplendor da idade do mundo, sua realização, a imensidão de sua última libertação. Você esqueceu tudo, menos Savannah, Savannah Bay. Savannah Bay é você.” [p. 35]
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Assim como o Lol V. Stein está dilacerada pelo trauma que lhe atravessa, o mesmo acontece com Madalena. As duas mulheres são, de maneiras diferentes, arrebatadas de alguma forma que culmina na mesma questão: o apagamento de si. Chega a ser bonito perceber como Duras constrói de maneiras tão opostas a mesma questão, inclusive. Sendo nas entrelinhas ou nas rubricas, Duras nos obrigará a olhar para personagens dilaceradas que não se enxergam amputadas, até que reparemos que nossos nomes são também abreviados, nossas peregrinações são também significativas, nosso passado é também revisitado, nossa memória é também fragmentada. Carregamos, inevitavelmente, Marguerite Duras em nossa identidade.