Resenha do romance Forte como a morte, de Otto Leopoldo Winck, publicado pela editora Aboio
“A rosa é sem porquê; floresce porque floresce, não presta atenção a si mesma, não pergunta se é vista.”
Angelus Silesius
Um dia, a figura de Hamlet olhou para seu companheiro Horácio e pronunciou uma frase que se tornou um clichê em nossos tempos: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia.”
Embora isto não seja nenhuma novidade e até tenhamos repetido a frase à exaustão, de modo que ela chega a perder um pouco de sua força, Shakespeare estava dizendo muitas coisas. Em resumo, poderíamos afirmar que a frase diz que é preciso muitos vazios para se produzir uma imaginação ou, ainda, que o verdadeiro mistério é aquele que não podemos sequer imaginar.
Digo isso porque precisava percorrer o assunto deste meu texto, precisava tatear o assunto e abordá-lo pelas suas margens, porque a matéria da qual estou a procura é também fugidia e feita de muitos mistérios, tal qual aqueles previstos por Hamlet.
Forte como a morte, romance de Otto Leopoldo Winck, é, com quase certeza, um romance que investiga mistérios. E ele faz isso através de um texto que trabalha por esvaziamento ou, melhor dizendo, por miniaturização. São três narrativas que atravessam o romance (mais um excerto que conto mais à frente): uma primeira, que se passa durante um período de 7 meses e conta a história de uma menina que adoece; a segunda, que se passa no período de um dia e conta a história de uma mulher e seus filhos e, por fim, temos a história de um padre, que se passa em poucas horas. Mas… vamos falar um pouco mais de cada um delas.
A trama principal narra a história de uma menina chamada Rosália que começa a apresentar feridas em sua pele. Habitantes de uma zona rural, de pessoas simples com seus misticismos amplos e complexos, passam a acreditar que as feridas de Rosália são a reprodução das chagas de Jesus Cristo e que, por conta disso, a menina seria uma enviada de Deus para sofrer, tal como fizeram Jesus, Jó e outros, para assim operar milagres e purgar os pecados do mundo.
Diante deste cenário, um médico e um padre são chamados a frequentar a casa e ambos dão o mesmo diagnóstico: não se sabe, não se pode saber. A partir daí uma migração constante de pessoas atravessa a casa de Rosália, seu pai e sua mãe, em busca da benção da doente.
De outro lado, uma outra narrativa captura uma família que vive em um acampamento de um movimento social. Tal como um grupo de sem-terra, a mulher, marido e seus dois filhos vivem neste acampamento onde são atravessados constantemente pelas mudanças de territórios e pelo engajamento do marido na luta por terras. Além disso, contam também com a presença constante de um padre.
Na terceira trama, acompanhamos um padre solitário na noite de Natal. Em suas reflexões sobre os tempos de seminário, nos momentos de tentação com mulheres, até o seu presente, ele vai recompondo a sua vida de dedicação à Deus e sua militância por um mundo mais justo.
De certa forma, podemos dizer que, até aqui, contei o recheio do livro, mas é preciso que se diga algo da fundação, das estruturas: Otto Lepoldo Winck possui muitas referências, todas elas aparecem nesse romance,desde jogos bem humorados, como a primeira frase do livro que remete à Kafka ao dizer que “Quando certa manhã Rosália Klossosky se levantou, depois de sonhos inquietos – e que sonhos, meu Deus! – percebeu que havia uma mancha levemente rosada na palma de cada mão”, até uma forte relação com o procedimento estrutural da literatura de Jorge Luis Borges, com a “atribuição errônea” e o “anacronismo deliberado”.
Porém, estas referências poderiam soar empoladas se não fossem magistralmente acopladas dentro de alguns procedimentos textuais – e Otto faz bom uso de muitos deles. Cito alguns.
Primeiro, Forte como a Morte se lança em um jogo direto com o regionalismo brasileiro. Veja bem, o livro não é regionalista, mas regional, de modo que o recorte de um espaço específico, ou seja, uma “região”, funciona em escala como tentativa de buscar o universalizável das relações. Misticismo, relações comerciais, desejos, sexualidade, inocência, violência e morbidez são regionais porque recortam o mundo e, assim, materializam uma cena.
É como se estivéssemos em uma igreja acompanhando os quadros da Paixão de Cristo que são espalhados pelas paredes: a cada um deles há uma cena única, mas cujo sentido é a trajetória de sofrimento de Jesus até a chegada ao altar.
Ao lado deste procedimento, surge outro, talvez o mais importante, que é a kénosis. Durante todo o romance, somos entrecortados por trechos de filósofos, pensadores e teólogos através deste conceito,que atravessou séculos na filosofia e nos cristianismos.
Em linhas gerais, a kénosis é o ato de se esvaziar de si mesmo sem perder a própria identidade. A proposta é fazer uma abertura ao outro e se encontrar no outro. Segundo essa linha teológica, para encontrar Deus você não deve se encher de espírito santo ou se encher de fé. Ao contrário, é no esvaziamento do seu ser, no arrefecimento de suas forças como indivíduo que estaremos mais próximos de Deus.
Essa linha é próxima do que pensam budistas e outras religiões orientais, mas também podem ser vistas em figuras excêntricas como Inri Cristo, que afirma veementemente que os ateus estão mais perto de Deus do que os cristãos porque a não-crença daria a eles uma inocência de Deus. E isto se pode ver na narrativa até quando sai da boca do padre:
Deus? Ora, Deus é a resposta ex-machina para todas as perguntas sem resposta. (…) O ateísmo moderno, meu caro, não é necessariamente a rejeição ao conceito de Deus, mas antes a um determinado conceito de Deus desenvolvido no ocidente: um Deus pessoal, tapa-buracos e punitivo, sempre escarrando no chão e obcecado com a atividade de nossos órgãos excretores.
Retomemos então alguns dos pontos que tratamos acima: Forte como a Morte é um romance com temática regionalista em que acredita-se que uma menina desenvolveu as chagas de Jesus. Durante sete meses, milhares de pessoas peregrinam pela região. Otto parte dos grandes mistérios da humanidade que nos atravessam para pensar a vida desses personagens: a menina, a mulher mais velha, seu marido militante, seu pai trabalhador, sua mãe amorosa, seu irmão interesseiro, um padre comunista e, por fim, uma prostituta.
A doçura com que essas figuras são tratadas por Otto, ao meu ver, são resultado desse efeito que só a kénosis pode trazer: Otto não é um descrente, não há entropia na vida daquelas figuras, pelo contrário, é no esvaziamento de sentido daquelas histórias que elas passam a ser exemplares e, assim, universais:
Alma vítima? A expressão não lhe soava bem. Ali todos eram de certa forma vítimas: ela o marido, aqueles colonos todos, cada um com sua história de lutas, agruras, feridas. E eles tinham não somente alma, mas também corpo: um corpo igualmente vítima, lanhado de marcas da vida.
Um escritor piauiense que admiro muito, Assis Brasil, dizia que era mais que um comunista porque acreditava que éramos todos não só oprimidos sociais, mas também oprimidos cósmicos, como se o abandono de Deus, seu silêncio, fosse mais uma das camadas que tornam os seres frágeis diante do mundo cão.
Cornélio Penna, também um grande e esquecido escritor brasileiro, tratou de alguns temas similares em romances como A Menina Morta e Fronteira, este último, inclusive, que inspirou o filme brasileiro A festa da menina morta.
Digo isso para inscrever Forte como a Morte, de Otto Leopoldo Winck, na tradição dos escritores brasileiros que fazem o regional ser um pêndulo para questões muito mais difíceis do que os mistérios do outro mundo ou a exploração social dos corpos.
Este livro é um relato vívido de experiências intensas da existência, de movimentos sociais e individuais como mecanismos da História. Tudo é pequeno e o pequeno é tudo. Não tiremos o olho de nada porque lá pode estar o mistério. E assim, olhamos para o que? Corpos que sofrem e se perdoam. Almas que buscam e descobrem como buscar. Vidas injustiçadas que, fora do livro, precisamos salvar.
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