Rosa Montero é um dos principais nomes da literatura espanhola contemporânea. Estudou jornalismo e psicologia e atuou em diferentes segmentos. Possui mais de 20 livros publicados, entre romances, infantis e ensaios, além de ter conquistado inúmeros prêmios literários, jornalísticos e áreas afins. Na profissão de jornalista, escreveu para diversos veículos de comunicação e chegou a ocupar a função de redatora-chefe do jornal El País. Estão entre alguns títulos publicados no Brasil: A louca da casa (2015), A ridícula ideia de nunca mais te ver (2019), Nós, mulheres (2020), A boa sorte (2022), O perigo de estar lúcida (2023), entre outros. Alguns deles, por vezes, mesclam ficção, autobiografia e/ou ensaios.
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Em O perigo de estar lúcida, lançado pela Editora Todavia, a autora, a partir de sua experiência pessoal, recorre a inúmeros materiais de psicologia, neurociência, literatura e memórias dos mais diversos escritores, pensadores e artistas para elaborar um estudo sobre a relação entre criatividade e instabilidade mental.
“Esses temas sempre me interessaram, mas desde que decidi escrever um livro sobre criação e loucura, comecei a ler compulsivamente sobre o assunto. Estou há cerca de três anos sepultada sob dezenas de volumes não só de psicólogos, psiquiatras e neurologistas, como também de escritores mais ou menos oficialmente birutas, ou de suicidas, ou de autores que escrevem sobre o ofício de escrever, ou de especialistas estranhos que falam da relação dos artistas com as drogas e coisas assim. Para não transformar a leitura deste livro num contínuo tropeço insuportável, não estou incluindo no texto quase nenhuma das fontes do que conto; todas elas estão compiladas ao final do volume, e espero que fiquem claras minha gratidão e minha dívida. É uma lista bastante longa, mas recomendo encarecidamente que você a leia até o fim: a perseverança tem sua recompensa.”
Nessa espécie de investigação instigante, ela reflete sobre surpreendentes aspectos do processo de criação, bem como demonstra dados e curiosidades, abordando também questões que envolvem ansiedade, transtornos e loucura.
“O leitor descobrirá a teoria da “tempestade perfeita” ― aquela que prega que na explosão criativa são postos em cena fatores químicos e situacionais irrepetíveis ― e presenciará o processo de surgimento de ideias de Rosa Montero, desfrutando das vivências da autora, que habitou diretamente, e durante anos, um território nas vizinhanças da loucura.” (sinopse)
Confira algumas citações:
“Uma das coisas boas que fui percebendo com os anos é que ser estranho não é nada estranho, ao contrário do que o termo pode sugerir. Na verdade, o que é realmente estranho é ser normal. Uma pesquisa do Departamento de Psicologia da Universidade Yale, nos Estados Unidos, publicada em 2018, afirma algo que basta pensarmos um pouco para tornar-se óbvio: a normalidade não existe. Porque o conceito de normal é uma construção estatística derivada do mais frequente. Em primeiro lugar, que uma característica seja menos frequente não implica uma anormalidade patológica: por exemplo, ser canhoto (há apenas entre 10% e 17% de canhotos no mundo). Além disso, como o modelo ideal de indivíduo normal é elaborado pela média estatística de uma pluralidade de registros, não deve haver uma única pessoa no planeta que gabarite o conjunto de valores. Todos guardamos no fundo do nosso coração alguma divergência. Somos todos esquisitinhos, embora, é verdade, uns mais do que outros.”
“Inclusive, eu diria que ser um pouco mais estranho que o habitual também não é incomum. Na verdade, isso acontece com frequência entre os criadores diga-se em minúsculas: entre os artistas de qualquer categoria, sejam bons ou ruins. Este livro é exatamente sobre isso. Sobre a relação entre a criatividade e uma certa extravagância. Sobre se a criação tem algo a ver com a alucinação. Ou se ser artista te torna mais propenso ao desequilíbrio mental, como se tem suspeitado desde o início dos tempos: “Não há gênio sem uma dose de loucura”, dizia Sêneca. Ou Diderot: “Como o gênio e a loucura são parecidos!”. E por gênio, insisto, entenda-se todo indivíduo criativo, da qualidade que for, pois estou convencida de que o pior artista e o mais sublime partilham da mesma estrutura mental básica. Já apontou a formidável (e deprimida) Clarice Lispector: “Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir.”
“Voltando à abundância de manias entre os criadores, e para citar apenas algumas a título de aperitivo, direi que Kafka, além de mastigar cada porção 32 vezes, fazia ginástica pelado com a janela aberta e um frio de rachar; Sócrates usava sempre a mesma roupa, andava descalço e dançava sozinho; Proust se enfiou na cama um dia e nunca mais saiu (assim como muitos outros, entre eles Valle-Inclán e o uruguaio Juan Carlos Onetti); Agatha Christie escrevia na banheira; Rousseau era masoquista e exibicionista; Freud tinha medo de trens; Hitchcock, de ovos; Napoleão, de gatos; e a jovem escritora colombiana Amalia Andrade, de quem obtive os três últimos exemplos de fobias, tinha medo na infância de que lhe crescessem árvores dentro do corpo por ter engolido uma semente […]. Rudyard Kipling só conseguia escrever com tinta bem preta, a ponto de o preto azulado já lhe parecer “uma aberração”. Schiller punha maçãs estragadas na gaveta da sua mesa, pois para escrever precisava sentir o cheiro da podridão. Na velhice, Isak Dinesen comia tão somente ostras e uvas brancas com um pouco de aspargo; Stefan Zweig era um obsessivo colecionador de autógrafos e enviava três ou quatro cartas por dia a suas personalidades favoritas, pedindo uma assinatura… Para não falar de Dalí, que sempre foi o rei das extravagâncias.”
“Mais de 300 milhões de pessoas sofrem de depressão no planeta, e o pior é que a incidência parece estar aumentando (o número total subiu 18% entre 2005 e 2015). Cerca de 800 mil pessoas se suicidam a cada ano (na Espanha, quase 4 mil). Um por cento dos seres humanos desenvolverá alguma forma de esquizofrenia ao longo da vida, e 12,5% dos problemas de saúde mundiais se devem a doenças psiquiátricas, um número maior que o do câncer ou de enfermidades cardiovasculares. Segundo a Organização Mundial da Saúde, uma a cada quatro pessoas na Terra sofrerá de transtorno mental em algum momento da sua existência. São números impactantes, mas são ainda piores os que se referem ao estado psíquico dos artistas, e em especial de nós, escritores, que aparentemente colhemos os louros em matéria de maluquice.”
“Sim, eu sei que quando falamos de criadores insanos todos pensamos na mesma hora na orelha sanguinolenta de Van Gogh, mas diversos especialistas concordam que os artistas plásticos sofrem menos desequilíbrios, e os músicos, muito poucos, enquanto aqueles que se dedicam a juntar palavras têm maior tendência ao descalabro mental.”
“Segundo um célebre estudo da psiquiatra Nancy Andreasen, da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, os escritores têm quatro vezes mais chances de sofrer de transtorno bipolar e até três vezes mais de padecer de depressão do que pessoas não criativas. No entanto, o estudo também atribui aos autores altas doses de intensidade, entusiasmo e energia, por mais paradoxal que pareça […]. Outros pesquisadores, como Jamison e Schildkraut, defendem que entre 40% e 50% dos escritores e artistas criativos sofrem de algum transtorno de ânimo. É como jogar roleta com uma bola de chumbo: são muitas as chances de que ela caia em você.”
“Virginia Woolf sofreu sua primeira crise mental aos treze anos. Ela estava caminhando por uma trilha quando topou com uma pequena poça. “Por algum motivo que não consegui descobrir, tudo de repente era irreal e fiquei em suspenso, não podia pular a poça […]. O mundo inteiro se tornou irreal.” Naquele mesmo dia, à noite, enquanto tomava banho com sua irmā Vanessa, aconteceu de novo: “O horror voltou, não falei nada, não podia explicar, nem mesmo à Nessa, que se esfregava com a esponja do outro lado da banheira”. Virginia habitava o penoso território da psicose. Nas suas crises, ouvia os pássaros cantarem em grego clássico e acreditava ver agachado entre os arbustos do jardim o rei Eduardo dizendo indecências. Foi hospitalizada repetidas vezes e tentou se suicidar em diversas ocasiões, a primeira pulando de uma janela que se revelou baixa demais, depois tomando Veronal, e a última e definitiva, aos 59 anos, enchendo os bolsos de pedras e se afogando no rio Ouse.”
“(…) como Virginia Woolf deixou claro, quando se sofre um transtorno mental, a primeira coisa arrancada de você é a palavra. E com isso chegamos ao núcleo incandescente do que chamamos de loucura. Estar louco é, sobretudo, estar só. Mas falo de uma solidão descomunal, de algo que não se parece em nada com o que entendemos quando dizemos a palavra solidão. Ainda não foram inventadas as letras capazes de conter e descrever uma solidão assim. Tente imaginá-la: já falei que a realidade passa para o outro lado de um túnel, que é o mesmo que dizer que você se afasta da realidade e perde todo contato com ela.”
“Morrer faz parte da vida. Morrer é um fato profundamente humano. Você morre sozinho, sim, talvez com sua dor e com seu medo, mas morre sabendo que todos iremos pelo mesmo caminho. É cumprir mais uma vez com o destino comum. Todos os indivíduos experimentaram essa realidade desde o princípio do mundo. Enquanto a loucura, por outro lado, te faz acreditar equivocadamente que aquilo que está vivendo só é experimentado por você. Que não há ninguém com quem possa se irmanar. Sentir-se louco é sentir que de algum modo você já não pertence à espécie humana.”
“Na Universidade Complutense de Madri, fiquei sabendo que sofria de crises de pânico, e que era um transtorno neurótico bastante comum, uma espécie de gripe dos desequilíbrios mentais. Também descobri que, embora não sejamos conscientes disso, o medo, em última instância, é medo da morte, mas ele está tão sepultado pelo terror cego que não chegamos a distinguir o que nos aterroriza. E o sofrimento é tanto que em certos momentos até preferiríamos estar mortos, um exemplo perfeito de raciocínio em curto-circuito: a morte nos assusta e, para não sofrer com esse susto, escolheríamos morrer. No meu caso, falo apenas de uma vaga sensação de alívio diante da simples ideia da não existência, porque nunca tive pensamentos suicidas reais. Mas acredito que quem acaba atentando contra a própria vida possa ter nós mentais parecidos. A propósito: de acordo com um estudo sueco, os escritores têm 50% mais chances de se suicidar do que a população em geral.”
“Kandel também diz isto: “Ao que parece, todas as alterações psiquiátricas surgem quando certas partes da rede neural alguns neurônios e os circuitos em que se encontram são hiperativas, estão inativas ou são incapazes de se comunicar de modo eficaz”. Seria, portanto, uma espécie de falha na fiação neurológica, embora ainda não se saiba se isso pode ser por um defeito genético, por fraturas microscópicas ou alterações nas sinapses (a conexão entre os neurônios). Assim, não restam dúvidas de que, naquilo que chamamos de loucura, sempre há uma base biológica, química e elétrica. O que complica a coisa é que existem influências externas que alteram nossa biologia. As circunstâncias sociais, por exemplo, podem nos fazer produzir cortisol em demasia, que é o principal hormônio do estresse. Se estamos angustiados durante muito tempo, o cortisol pode alcançar concentrações excessivas e destruir as conexões entre os neurônios do hipocampo, uma parte do cérebro importantíssima para a memória, e do córtex pré-frontal, que regula a vontade de viver e influencia na tomada de decisões.”
“As carências sociais ou sensoriais durante os primeiros anos de vida danificam a estrutura do cérebro”, continua Kandel. “De modo similar, precisamos de interação social para continuarmos sendo inteligentes na velhice.” E o neurocientista David Eagleman conta, no livro Incógnito, que os especialistas estão há décadas procurando o gene relacionado à esquizofrenia e, com efeito, já descobriram uma porção deles. Mas vários estudos mostram que nenhum desses genes te predispõe a sofrer de determinada doença tanto quanto a cor do seu passaporte. “A tensão social de ser emigrante num país novo é um dos fatores fundamentais para padecer de esquizofrenia. De modo que, sim, genética é essencial, mas o meio também.”
“Intuo que as pessoas mais destrambelhadas, aquelas mais gravemente mordidas pela doença mental, têm maior dificuldade de se reconhecer nas suas emoções. Por exemplo, fiquei chocada ao ver, nos fascinantes diários de Sylvia Plath, como ela parece usar todo mundo que conhece como mera documentação para sua obra (exceto os homens pelos quais ela acredita estar apaixonada: a paixão é sua ruína): “Amo as pessoas. Todas elas. Amo-as, creio, como um colecionador de selos ama sua coleção. Cada história, cada incidente, cada fragmento de conversa é matéria-prima para mim”. Essa tendência a desumanizar o outro e transformá-lo em objeto de estudo vai piorando com os anos. Daria para dizer que ela é incapaz de ter um amigo, uma amiga. Na parte final dos diários, as entradas começam a ter algo assustador: parece que ela transforma absolutamente tudo o que é vivo em anotações de trabalho para poder escrever depois a respeito.”
“Muita gente tem imaginação e é criativa, embora depois não faça nada específico com isso. Mas o que está claro para mim é que, para que haja uma criatividade produtiva, isto é, para que se construa essa forma exata de ser alguém que conduz à obra, seja ela boa ou ruim, é necessária a combinação de um bom número de fatores. Há uma tempestade perfeita por trás de cada livro, de cada escultura, de cada quadro e cada música.”
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