Umas breves palavras sobre Macbett, publicado no Brasil pela Temporal editora
Eu tenho um verdadeiro amor por personagens pífios. Fios de histórias que são desenrolados para que outras histórias se desenrolem, mas que ficam lá, criados meio à revela de si próprios, sem receber atenção às suas dores e suas existências. Existem, mas ninguém percebe. No teatro, então, isso acontece bastante.
Acabei de ler Macbett, do dramaturgo romeno Eugène Ionesco, uma adaptação do clássico shakespeariano Macbeth. É a primeira vez que a obra ganha publicação no Brasil, lançada pela Temporal editora com tradução de Marina Bento Veshagem.
Com um intervalo de 300 séculos de distância entre elas, e com Ionesco tendo lido Shakespeare, mas Shakespeare nunca tendo lido Ionesco, podemos perceber um salto das questões: enquanto Shakespeare fala da tragicidade das escolhas, da sedução do poder e das vinganças que temos dentro da gente, Ionesco parece falar da inutilidade de todas essas coisas, ainda que estejamos agindo por esses sentimentos.
Por vícios meramente humanos, mas também históricos, nos tornamos autômatos da linguagem e do nosso tempo, das forças históricas que nos empurram para um lado ou outro e, até para nossas fraquezas que gritam incessantemente dentro de nós.
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Em Shakespeare, as personagens parecem muitas vezes vítimas de suas paixões e suas ambições. Em Ionesco, todos somos vítimas, os apaixonados e os que deixam de amar. De qualquer forma, palavra e história passarão o trator sobre todos.
Mas voltando ao começo do meu texto, em determinado momento, o Rei Duncan recebe uma série de figuras doente e, com a benção de um monge e de Deus, realiza uma série de curas. Essas figuras que passam às dezenas – pelo menos 11 delas podem ser identificadas, mas Ionesco cita que o movimento pode durar mais – são apresentadas assim:
OFICIAL – Monsenhor, como o primeiro de cada mês, este é o dia que os escrofulosos, os flegmonosos, os tuberculosos, os histéricos vêm para que o senhor os cure do mal pelo dom da graça que lhe foram concedidos por Deus.
Eis que começam a passar os doentes, e um deles, no caso, o segundo, diz uma das frases mais lindas da literatura universal”:
SEGUNDO DOENTE – “Monsenhor, não posso viver e não posso morrer. Eu não posso ficar sentado, não posso ficar deitado, nem de pé sem me mover ou correr. Tenho queimações e comichões da cabeça até a planta dos pés. Eu não posso suportar a casa, nem a rua. O universo é para im uma prisão ou um cárcere. Olhar para o mundo me dói. Eu não posso suportar a luz, não posso suportar as trevas, tenho horror aos humanos e tenho medo da solidão. Eu desvio meu olhar ads árvores e das ovelhas, dos cachorros ou da relva, das estrelas ou das pedras. Não sou feliz em momento algum. Gostaria de poder chorar, Monsenhor, e de conhecer a alegria.”
Desde que li este relato, passei a pensar em outra frase dita por Ionesco: “A História é ardilosa. Tudo nos escapa. Não somos senhores daquilo que desencadeamos. As coisas se voltam contra nós.” E creio ser verdade, porque depois deste relato toda a história de Macbett se tornou secundária para mim. A história do segundo doente, a meu ver, vira a história que “nos escapa”, que nos deixa longe de “ser senhores daquilo que desencadeamos”. Ionesco por escrever, eu por sentir.
Sofri com esse doente e pensei num “devir vítima” que devia ser, talvez, algo que passe por esse caminho. Sobre quem diante da história sofre, chora, até morre sem nem ser vítima: uma vítima da própria criação da história que não tem sobre ela sequer o motor de parar ou morrer.
Se toda criação é realmente a criação de uma violência. Que medo este e que responsabilidade esta que deve ser criar. Fechei o livro, e comecei a chorar.