Alguns livros funcionam como espécias de fendas na História. Obras que cavam diante de um mundo normal muitos mundos. Esta foi a exata sensação que tive ao terminar de ler Dois Sherpas, de Sebastían Martínez Daniell. Por isso, vou escrever uma resenha em três movimentos, três espaços de abertura por onde podemos ler a obra de modo que um leitor possa encontrar a sua fenda para adentrar neste complexo multimundo literário de Sebastían Martínez Daniell.
Sobre o livro ou sobre o que podemos ler
O romance Dois Sherpas, de Sebastían Martínez Daniell, conta a história de dois sherpas, grupo da etnia que vive próximo à montanha do Himalaia e trabalha levando turistas europeus até o topo do Everest. Um deles é conhecido como o “sherpa jovem” e o outro como o “sherpa velho”. Em uma dessas viagens, o inglês cai lá de cima e morre. Os sherpas – velho e jovem – ficam vislumbrando o corpo caído do inglês e começam a fazer uma outra viagem, reflexões, divagações sobre a existência e até um repassar da vida no próprio passado.
Todo o livro, podemos dizer, se passa em poucos minutos, um momento curto de ação, uma fração entre a queda e percepção de que se deve fazer algo mas cujo movimento de memória se alarga até o limite do quase desfazimento. Uma permissão de narração atrofiada que vai se expandindo em pequenos blocos, pequenos capítulos em série que também poderiam, alguns deles, estar em qualquer ordem. Este formato permite que Danieel vá abrindo o romance eternamente, uma vez que a estrutura montada é simultaneamente hermética e aberta.
Quem são os Sherpas e a literatura como espaço de cultura
Para quem não conhece, os sherpas são um povo que habita a região do Nepal, próximo à do Himalaia. O nome da etnia vem da combinação de dois termos, sendo a palavra sherpa significando literalmente “povo do leste” (shyarpa = shyar (leste) + pa (povo)).
Os sherpas receberam esse nome por conta de serem advindos de uma dissidência com outros budistas no oeste. Durante a história, eles passaram a ter divergências por conta de suas religião: Um grupo acreditava que que qualquer pessoa poderia chegar ao êxtase espiritual, bastando que seguisse todas as normas, regras e dogmas estabelecidos, enquanto outros acreditavam que apenas aqueles que eram membros daquela etnia que seriam capazes de desenvolver a iluminação. E como eram os sherpas?
Os sherpas, no caso, faziam parte deste grupo mais “abertos” e acreditavam que era só seguir as regras que iriam atingir o êxtase espiritual. Este conceito, no entanto, começou a fazer como que eles fossem mal vistos pelos demais, principalmente pelo fato de que essa abertura permitia uma migração de outros grupos para lá, o que poderia colocar em risco a preservação de suas culturas. O resultado é que, com o tempo, os sherpas foram migrando e virando quem são hoje, esse povo que recebe e se autoentitula “sherpa”. Atualmente, eles vivem no pé do Himalaia e de frente para o Monte Everest.
Grande parte da renda dos sherpas, atualmente, tem a ver com o ciclo de turismo ao Nepal e ao Everest. Aos poucos, os sherpas desenvolveram técnicas para ajudar turistas a subir ao Everest, então, individualmente ou em duplas, eles fazem todo o trajeto junto com os turistas carregando seus materiais, alimento, barracas, etc. Além disso, por conta do vasto conhecimento da montanha, eles são os mais aptos a mostrar onde estão os perigos, as dificuldades e tudo mais.
Sebastían Martínez Daniell: o estrangeiro da própria história
Trago duas imagens: Na primeira metade do romance, Sebastían traz a questão da origem da terra. Descrevendo as principais teorias vigentes, dos vulcões, dos elementos, ele recorre a Goethe e aos gregos e atravessa o capítulo inteiro nesta reflexão sobre a origem da totalidade do universo. Em outro, o autor se debruça sobre a unidade do floco de neve. Ali não é a totalidade que chama atenção, mas o fragmento mínimo de um floco de neve que se desfaz ao primeiro toque.
“Não há dois flocos iguais, surpreendem-se as mentes simples. O idêntico não existe, responderia o sherpa velho. O mesmo que dizemos do floco poderíamos dizer das ondas do oceano, dos grãos de areia do deserto, das garrafas produzidas em série numa fábrica de Detroit. Não há dois que sejam iguais…”
Entre a grande do todo e a pequenez do quase nada, estamos todos imprensados, parece dizer o autor. E isto coloca aqueles dois sujeitos, o sherpa jovem e o sherpa velho (que quase nem é sherpa) no entrecruzamento destas duas grandezas: em uma, o universo inteiro é grande demais para cada um de nós, tornando o presente uma coisa irrelevante e nossos problemas pequenos demais para a imensidão; e simultaneamente, a realidade tão ínfima como um floco de neve, uno, irrepetível, fazendo com que o presente seja tudo que podemos vestir para a viver.
Sebastían Martínez Daniell, de certa forma, se coloca ao lado desses sherpas, entre o tudo e o nada, entre o abismo e o descanso, fazendo de Dois Sherpas um livro que é escrito enquanto se vive. A próxima palavra, o próximo capítulo é sempre estranho ao autor que parece descobri-lo com a mesma incerteza com que nós lemos. Somos todos, eu, você, Sebastían e Sherpas, leitores deste mundo que quase nada nos responde.
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