“-Pode me chamar de Fernando”, de Wesley Barbosa: o nome, a fome e a desigualdade

Eu não me culpo por narrar essa história, porque antes de escrevê-la, precisei vivenciá-la para entender as lágrimas de seus becos escuros e quase sem esperança para suportar seus medos, suas frustrações e suas dores de alma.
Wesley Barbosa

Uma das questões mais debatidas na teoria literária é a discussão em torno do nome. O nome, marca de identidade e autoria, é aquilo que traz pessoalidade, individualidade e substrato para uma obra. Tanto é que a literatura do século XX buscou se desfazer do nome, ou seja, da autoria como lugar de autoridade. Perder o nome, então, era uma questão essencial para fazer surgir a autônoma obra de arte. Entretanto, e por isso uma leitura decolonial é essencial na contemporaneidade, a questão do nome também é distribuída com seus privilégios.

Quando fazemos um recorte de classe e raça podemos ver em grupos invisibilizados uma necessidade constante de luta por “ser alguém”. O reconhecimento de um nome próprio – porque o nome também traz consigo o sobrenome, o nome de “família”, o nome que dá história, origem, memória – é um desejo de conquista de uma pessoalidade reconhecida, respeitada. Um presente, então, que passa a poder ser conquistado a partir do momento em que se conquista o nome. E este, a meu ver, é o grande ponto de partida do romance “- Pode me chamar de Fernando”, de Wesley Barbosa.

Viela Ensanguentada, de Wesley Barbosa, uma literatura para além do beco

Nas primeiras páginas do livro, Wesley Barbosa nos traz o menino Fernando que conta que é ele quem vai relatar uma história, a sua história que sai de “dentro do abismo do pensar”. Logo em seguida, a questão do nome aparece como chave deste Fernando que Wesley está construindo:

Jamais gostei do meu nome porque não acho que tenha muito a ver comigo, mas, por outro lado, não sei se seria capaz de encontrar um melhor”.

A frase que dá título ao romance se torna essencial, uma vez que se chamar Fernando não é uma propriedade do menino, pelo contrário, é, ainda, uma coisa que vem de fora para dentro: Fernando é o nome que lhe deram. “- Pode me chamar de Fernando”, assim dito, significa dizer que o menino ainda não é Fernando, mas está em vias de se tornar, está em um processo de ganhar um nome, um devir Fernando que está sendo conquistado. Isso é essencial para contar a história do menino, pois é justamente no contato com os livros que este nome próprio começará a ser construído, assim como, é na escrita de seu livro, com sua história, que a conquista do nome será concluída.

Porém, qual a história do menino Fernando? No decorrer das pouco mais de 100 páginas do livro, Wesley Barbosa constrói uma história marcante e sensível, como é característica em todos os seus livros. Mas não só, o livro traz também um aspecto mais grave de Wesley, mais seco, perspicaz e mordaz. Conhecemos este Fernando que mora com seu pai, um homem duro, de poucas palavras, alcoólatra. Este pai que não conta muito mais do seu passado, seu nascimento, suas origens, apenas acusa sua mãe de ser uma puta, fato que não sabemos se é verdadeiro ou não.

“Relatos de um Desgraçado sem Endereço Fixo”, a literatura breve e voraz de Wesley Barbosa

Seguimos, então, acompanhando Fernando em outros momentos da vida, mudando de casa diversas vezes, de pensões para favelas, até um quartinho cedido ao pai que passa a trabalhar na feira. Experienciamos das dificuldades de não ter o que comer aos conhecimentos que chegam aos poucos, ao entrar em contato com uma menina vizinha que lhe ensina a ler e lhe empresta livros.

E nesta espécie de romance de formação, Fernando vai descobrindo, muito por conta dos livros, a existência de um mundo muito maior do que seu quarto. Vai entendendo que a experiência pouco afetuosa do seu pai é resultado trágico do passado e das condições de vida em que vive. Vai entendendo que aquilo que ele vive não é fruto do acaso, ou castigo divino, mas resultado de uma história coletiva, política e social. Tudo ecoa e ressoa em sua vidinha pequena e frágil.

Mas, principalmente, Fernando descobre que tem um nome, uma história, uma vida. E que, agora, chegou a hora de contá-la pelas letras de Wesley Barbosa.

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