O país escolhido da vez foi o Japão e escolhi a peça Cientificamente Calculado [The Scientifically Minded], de Oriza Hirata. A minha intenção, dessa vez, foi procurar um dramaturgo cujo texto e temática me trouxesse mais desafio para leitura. E olha, deu certo. Oriza Hirata, que além de diretor e dramaturgo é também pesquisador e acadêmico, tem uma vasta pesquisa em estudos de linguagem e robótica, elementos que geralmente incorpora em suas peças.
O autor ficou conhecido principalmente pela criação do chamado “teatro coloquial”, assim como também do “teatro do silêncio”, por conta de suas peças terem um ritmo de uma conversa cotidiana e, muitas vezes, não engendrarem propriamente uma “voz temática”, sendo os significados retirados mais da estrutura e da montagem do que propriamente do que é dito.
Cientificamente Calculado [The Scientifically Minded] foi um grande desafio de leitura, pois, a todo instante, eu sentia que estava frente a um exercício entrópico em que era difícil perceber o objetivo de toda aquela fala cotidiana. Além disso, durante todo o espetáculo o que se via eram constantes entradas e saídas de figuras em uma antessala de laboratório dizendo “olá” e “adeus” umas às outras, interrompendo fluxos e assuntos que começavam ainda a se construir.
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A peça, na verdade, conta a história de um grupo de estudantes e doutores em diversas áreas das ciências biológicas e naturais que estão trabalhando em torno de um projeto de pesquisas com uso de primatas. Assim, temos um desfile de 16 personagens, dentre eles 9 mulheres que, entre um trabalho e outro, vão nos relevando pequenas faces da vida dessas pessoas, assim como de suas profissões. Ao que aparece, estes estudantes e pesquisadores possuíam seus trabalhos pessoais, mas estavam todos ali chamados por um professor para contribuírem em uma pesquisa multidisciplinar em torno a ideia da “evolução”.
– Agora, é possível parar o crescimento do corpo e aumentar o tamanho do cérebro isoladamente?
— Teoricamente, sim, eu penso que é possível. (…) Bom, eu suponho que ele vai interromper o crescimento do corpo, dar ao cérebro mais tempo para amadurecer, como acontece com um ser humano, e depois, ensinar [ao animal] todo o tipo de coisa.”
Dentre todos os assuntos trabalhados aos fragmentos no decorrer da peça, alguns deles conseguimos capturar nas entrelinhas: O primeiro deles, que parece um pouco mais central, é a história de uma mulher que havia tentado suicídio, trazendo certa apreensão em torno de sua presença nas pessoas ao redor; depois, pode-se ver uma série de relacionamentos amorosos um tanto quanto silenciosos passando e perpassando a narrativa sem que ganhem protagonismo na cena como, por exemplo, um rapaz, que sai com uma das pesquisadoras, mas que havia engravidado também a amiga de sua irmã; além disso, isto faz emergir algumas relações de desigualdade de gênero entre homens e mulheres, principalmente no ambiente acadêmico frente a este mundo privado, emergindo traços destas desproporções não através de violências propriamente ditas, mas de pequenos gestos diluídos de opressão.
– Por que você está cheia de energia de repente?
– Nós precisamos estar.
– Sim?
— Ou então a evolução dos macacos vai tomar conta.
— O que?
— Nós somos suas mães — mães e amantes (abraça o macaco).
De certa maneira, a impressão é que Hirata busca uma espécie de reduplicação da pesquisa que seus cientistas fazem no interior de sua peça na criação de suas personagens: enquanto a pesquisa visa desacelerar o crescimento dos primatas para que seus cérebros possam se desenvolver por mais tempo, Hirata coloca suas personagens em sua latência da vida mais comezinha, em seus traços mais cotidianos, para que a partir dali se retire os vestígios de uma vida contemporânea bastante primitiva e instintiva.
Para fechar, acrescenta o uso da robótica como uma espécie de ponto de intersecção entre humanos e primatas, ou seja, ao nos desumanizarmos, nos aproximamos simultaneamente de nossa origem animal e nosso futuro como máquina, ainda que nos tornando mais “humanos” acabamos por reproduzir cada vez mais um mundo maquinal que, via de regra, aparece nos instintos mais simplórios da vida. No meio disso, uma humanidade que se forma nos fragmentos e nos cacos da linguagem.
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Sobre o autor:
Oriza Hirata é um dramaturgo, diretor e acadêmico japonês. Durante a maior parte de sua vida, ele foi mais conhecido por seu trabalho no teatro e por criar o que ele cunhou, “teatro coloquial contemporâneo”, ou como os críticos de teatro chamam, “drama tranquilo”
Sobre o teatro do mundo
O projeto Teatro do Mundo é um mergulho no gênero teatral em busca de dramaturgias escritas (e nem sempre publicadas) ao redor do mundo. Todos os dias eu sorteio um país, procuro uma peça dele e escrevo sobre ela. Sejam bem-vindos!