Acabei de ler a peça de teatro Lugar Nenhum, do Sérgio de Carvalho, que comanda a Companhia do Latão na edição publicada pela Temporal Editora. Nunca tinha lido nada do Latão, só acompanhado os espetáculos e, logo em um primeiro instante, achei interessante notar que estamos diante de um texto que, mais do que apenas dramaturgia, já se apresenta como esqueleto de um projeto que vai muito além de um teatro de papel.
A peça Lugar Nenhum conta a história de uma família de classe média/média alta, burguesa, mas engajada, que vai para uma casa de praia comemorar o aniversário do filho mais velho. Temos a mãe, uma famosa atriz de novela, que acabara de interromper uma peça do Ibsen que encenava; o pai, um amargurado cineasta da geração do cinema novo; o tio, uma espécie de hippie desiludido que vive na casa como uma fantasmagoria; o filho mais velho, um estudante de medicina que sonha em ser artista, mas nunca foi criado para tal.
E, ainda, passamos por uma série de outros personagens que vão compondo uma trama nem sempre densa, nem sempre complexa, mas que se constrói através de diversos muros entre essas figuras. Em uma olhada, percebemos, ao mesmo tempo, um retrato de uma geração dispersa entre as opressões da ditadura e as decepções da esquerda e os anseios de se manter viva a chama de uma transformação social e política do país.
No breve prefácio, Sérgio de Carvalho nos conta que o espetáculo é inspirado nos movimentos das peças de Tchekov. Ele faz uma interessante interpretação de Tchekov apontando o traço de “comédia” dos espetáculos, na medida em que vê na forma do dramaturgo russo um descrédito dos dramas de suas próprias personagens. Do mesmo modo, avalia que essas próprias figuras de peças estão imersas em suas hipocrisias, como se soubessem muito do mundo, mas não do próprio mundo.
Tudo isto, segundo Carvalho, faz com que Tchekov tenha um “agudo sentido de historicidade” para produzir o que ele chama de “dramaturgia épica” que, aos modos de Machado de Assis: “desconfiamos não só das figuras, mas da forma dramática que parece algo arbitrária e indiferente demais em relação ao sofrimento delas.”
De bastante diferente de Tchekov, a meu ver, Sérgio impõe a Lugar Nenhum a capacidade confrontativa dialógica das personagens. Enquanto em Tchekov vejo aquelas figuras um tanto quanto silenciosas ou, ainda, falando o tempo sozinhas de seus mundos, em Lugar Nenhum, elas se referem o tempo todo aos seus lugares, espécie de papéis sociais que cumprem dentro da lógica familiar, social, política. Isto, em algum ponto, pode tornar as personagens um tanto quanto didáticas se feitas por mãos pouco dialéticas, porém, é justamente nessa dialogia constante e incessante de papéis que a verborragia pode fazer jogo com Tchekov, mas um Tchekov tropical, em que os diálogos se dão ainda que entropicamente, resultando, na prática, no mesmo efeito produzido pelo russo, ainda que às avessas. Em determinado momento, a personagem de Teresa, a mãe, reflete sobre esse lugar impossível de habitação entre voz e silêncio, ação e inação:
“Mas como procurar a metamorfose numa personagem quando o desgosto nos prende a nós mesmas? Como sair de si, quando a tristeza nos chama de volta à nossa existência? Como inflamar e iluminar o outro, quando a luz do entusiasmo e o fogo da imaginação já não brilham aqui? Como um Diderot, imaginando um drama burguês impossível. Que todas essas personagens sigam sem perceber a tormenta que se forma sobre suas cabeças”.
Então, diante dessa ambivalente consciência-inconsciência, Lugar Nenhum aproveita também para refletir não apenas sobre as coisas do mundo, mas sobre seu próprio mundo das formas do teatro. Olhando para fora como quem olha pra si, as personagens por vezes parecem tomar consciência que estão em cena e refletem sobre seus papéis:
“Aprenderam que teatro é falar, quando antes é escutar. Aprenderam tanto que teatro é mostrar, quando é fazer. Aprenderam que é para explicar, quando é deixar viver.”
E justamente por conta disso que Lugar Nenhum, apesar de verborrágico anda tal como as figuras de Tchekov: apesar de tudo que possuem para dizer executam a tarefa do silêncio, ainda que falando.
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