Todo idiota que se preze tem uma artimanha bem elaborada para fingir a distração quando é confrontado. Para muita gente, essa coisa de tramar estratégia pode significar uma força cognitiva excepcional e então negação da primeira – a idiotice. Mas ninguém que faça o que o idiota faz tem qualquer direito de receber um bom título. Mesmo que dure um pensamento. Aquele rapaz realmente é ótimo, ele conseguiu me vender esse combo de espuma de barbear, e eu nem tenho barba! O rapaz compartilha notícias duvidosas por e-mail no velho computador da empresa, os textos dizem sobre as loções pós-barba da mesma marca curarem o câncer de pele. Além de espinhas.
Não pensamos no idiota como tal, pensamos condescendentes em todo seu corpo. “Não faz mal”. Para entendê-los melhor, costumo elaborar um série de quadradinhos para marcar, super objetivo. Categorizá-los, como os biólogos chamam. Porque a idiotice contém muita coisa e a idiotice pode ser chamada de outros nomes. Imbecilidade, burrice, bobagem e estupidez e… Digo, esses conceitos mais abstratos, para cima das palavras do dicionário, não esses entre vizinhos que abrem as janelas pequenas do albergue para gritar com alguém que desce ruidosamente as escadas. São críticos e tão específicos quanto o diagnóstico de um bom doutor.
Menino, pra onde tu vai que tá quase sem roupa?
Engraçado tu não saber, já que teu marido sempre aparece onde tô.
E nesse pensamento há um grau de relação categórica que gosto. É assim: idiotas em primeiro no quesito de tudo que se refere à negação do real prático funcional. Idiota é a pessoa que atrapalha o outro por razões fora do funcionamento social. Idiota não é alguém que esquece, é alguém que quer esquecer. Ele nega as más notícias quando o jornal chega, empurra o entregador, que incapaz de gritar desaforo, segue a vida acreditando que aquele é um caso isolado. Ele corta a fila do pão não porque se confundiu nas demarcações em fita no chão, mas porque poderia ter se confundido, ele aproveita a brecha quando a senhora se distrai com o bebê e o telefone que toca. Ele consome altas doses de álcool quando há mulheres vulneráveis, apenas para usar as doses como álibi e pelo menos conseguir encostar a mão na bela perna, que pensará tantas vezes no banheiro mais tarde.
Ele escolhe o escuro da dúvida e das ações que cabem espalhafatosamente um “Peraí, num foi assim não“. Também não é quem tem limitações biológicas para tanto, é uma identidade, um modelo de vida. Para os religiosos é a alma ou karma, envolve a pessoa nessa aura e às vezes tem cheiro. É podre. Às vezes aguça os ouvidos, não para audição, mais para um outro semelhante ao dos gatos.
Fantasia não cabe no oposto dessa “corrupção da realidade” que vimos. Os fantásticos não me entendam mal, mas sair para comprar pão nesse mundo não cabe na arte, cabe num lugarzinho tranquilo e preciso. Num padrão coerente e coeso e centrado em ponto comum, sem surpresas e sem violências. Por isso, eu imagino agora, ouvindo No Surprises, atravessando a fila de carros, minha cabeça vermelha ardendo ao verem através dos fumês e bandeiras empinadas que eu tenho na verdade orelhas de gato. A diferença é que eu sei distinguir a fantasia.
O idiota é o termo maior, retomo aqui o ponto, porque não diz mais nada. Não me volto a etimologias linguísticas de propósito – o idiota fala de absolutamente tudo, ao passo da profunda redundância. Por isso ao dar ouvidos a um idiota, temos aquela ressaca moral como se olhássemos o abismo das coisas perturbadoras, ali as pessoas não-idiotas percebem que, 1: caso sejam artistas ou usuários da arte, veem que há uma linha firme separando quando devemos usar o absurdo, a loucura e o caos para apreciação, e quando definitivamente não devemos. Se alguma coisa, devemos utilizar quaisquer meios para destruí-lo, jogá-lo ao próprio tártaro. 2: caso sejam pessoas comuns, consideram uma ingenuidade ou falta de articulações para se expressar, seguem a vida achando que as imagens do idiota na sua cabeça não assombrarão a vida, nem o inclinarão a dizer:
Não tenho nada contra gente preta, mas…
Atravessar aqueles dois blocos de prédios novos da Beira-Mar sempre dá a sensação de vertigem. Até quando essa gente velha em negação da velhice vai ficar na rua gritando, feito jovem, absolutamente nada? Acho que é isso, o vazio idiótico é mais parecido com o do espaço sideral do que imaginava. Queria só que realmente não propagassem o som.
Imbecilidade nos conta do limitado – uma palavra dolorosa para aqueles que não tiveram a escolha ao nascer, porém – que comete a uma ideia infantil de zombaria ou menosprezo impensado. Imbecil! Tem alguém sempre a falar. Acho que é a parte do “bê”. Como em filho da p…
Cortaram a rua num agudo de trombetas. Mantive e mantenho sempre a distância. Há a dúvida entre suas capacidades incríveis de enxergarem, ou apenas um grito aleatório aos transeuntes. Meu sobretudo era cor-de-vinho, nem vermelho! Nem vermelho.
Burrice me lembra uma dificuldade, não parece algo perpétuo ou que não tenha bons casos. Por exemplo, bobos da corte eram divertidos, até sabiam positivamente de umas coisas se mudássemos o foco. Ei, tu não és tão burro!, dizia o rei. O bobo era jogado na rua, um chute na bunda portão afora do castelo. Entendo o medo que sua cria pode vir ao mundo com altas tutorias de vingança.
Me aguarda, seu rei, me aguarde… Sem contar, uma vez sinonímia da teimosia, nos lembrarmos do animal. Pobre burro.
A porta abre e range e tem gente esperando que eu vá dizer coisas de um bom amigo, mas recolhi o ombro num gesto impreciso. A quem falta a estupidez, risca imediatamente meu nome dos oradores. Estupidez, por sua vez, nos diz algo mais, é sobre alguém que mancou, alguém que não viu direito, alguém que procurou a violência como resposta num caso à parte. Não está certo, mas há chance de redenção.
Que roupa estúpida de linda, Bernadete!
Às vezes, vem como algo extremo para agravar a coisa, esquentar os ânimos de modo a chamar a atenção para a falante também (não só a usuária da roupa estupidamente linda, Dete para os íntimos). Talvez o primeiro que falou confundiu-se com “estupendo!”, isso. E levou. E levaram. Não consegue entender o que sente, o que quer fazer ou o que quer mostrar ao oponente. Oponente nunca declarado, mas que pode vir a ter ressaca, porque não menos que os casos comuns, conversou com um idiota. Confundirá a ressaca com o resultado da quarta taça de vinho que leva à boca. Os efeitos são parecidos. Vou acompanhá-la ao banheiro se for preciso, não mais que isso.
De todas as formas, são doentes. E nunca é o doente real do funcionamento real, das coisas reais da realidade. É o doente que se adoece porque quer, idiota quem faz, mas idiota quem ouve também? Sim, Bernadete não cedeu, mas segurou meu braço mais forte ao ouvir uns sussurros perto do banheiro.
Não é nada, devem estar falando de viagens a Ibiza.
Olhou como quem pergunta mais, por quê?
Porque…
Não existe segredo nos idiotas. As mais jovens corriam para pegar o buquê. Tinha gente esclarecida debatendo sobre o que acontecia dez quarteirões atrás na Beira-Mar. Aceitar essa ideia, era declarar uma morte da razão que não nos cabia, sobre um passado que não tem presente, e sobre um futuro que morrerá três vezes antes de sequer ser concebido num sonho.
imagem da capa: Hold your horses por John Kilduff