Fiódor Dostoiévski é conhecido, principalmente, por suas obras Crime e Castigo (1866) e Os Irmãos Karamazov (1880). Antes disso, porém, o escritor russo já tinha escrito o impressionante Recordações da Casa dos Mortos (1862), que, se não inaugura, pelo menos eleva a outro patamar a prosa sobre prisões enquanto gênero.
O livro conta a história de Alexandre Petrovich Goriantchikov, um nobre que cumpriu 10 anos de trabalhos forçados na Sibéria. O livro, no entanto, é também escrito a partir das memórias do próprio Dostoiévski, que passou 4 anos em uma prisão de trabalhos forçados siberiana. Ele teve sua pena de morte convertida em trabalhos forçados por seu envolvimento com o circulo de Petrachévski, uma reunião de jovens que discutiam assuntos proibidos pelo Czar Nicolau I. A condenação à pena de morte fez parte de uma teatral decisão do Czar que, logo antes que os condenados fossem executados, informou-os da conversão da pena em trabalhos forçados, utilizando-se do medo dos instantes antes da morte como uma forma de torturar psicologicamente os acusados.
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Em Recordações da Casa dos Mortos, assim, Dostoiévski e Alexandre Petrovich amalgamam-se, de alguma forma. A confusão entre o que é ficção e o que é realidade é intensificada pela existência de um editor que, conforme apresentado no prefácio do livro, é quem reuniu as memórias de Petrovich no livro que o leitor tem em mãos. Dessa forma, temos um narrador ficcional, Alexandre Petrovich, que narra em primeira pessoa suas memórias, nas quais estão entremeadas as memórias do tempo de Dostoiévski na prisão e que são compiladas por um editor, também ficcional, mas que também é Dostoievski, na medida em que é ele quem escreve o livro.
Dividido por capítulos que, na realidade, são mais pequenos blocos de acontecimentos, quase como esquetes, rapidamente se nota o caráter etnográfico da escrita dessas memórias. A descrição minuciosa das pessoas, dos acontecimentos, das brigas, dos procedimentos, das festas e dos castigos físicos oferece um mergulho intenso e que, por vezes, por ser até mesmo cansativo – o que não é de forma alguma sinônimo de dizer que o livro é cansativo, mas sim que ele cumpre com maestria o papel de fazer o leitor capturas nuances dos sentimentos e das experiências que se passam naquela prisão. Situados entre um diário pessoas e um diário de campo, é quase como se cada capítulo pudesse ser lido fora da ordem, exceto pelo fato de que a leitura corrida dos mesmos vai tornando possível acompanhar os modos como o habituar-se a prisão vai complexificando a visão de Petrovich a respeito da instituição e das pessoas com quem convive.
No início, conta suas primeiras impressões – divididas em três capítulos, o que evidencia a quantidade de eventos, acontecimentos, pessoas e sensações das quais ele quer dar conta, e que não conseguem se condensar em um capítulo. Este recurso, inclusive, é utilizado outras vezes, com mais de um capítulo dedicado a falar sobre o mesmo tema, o que vai reforçando no leitor a percepção de excesso que corresponde à sua experiência na prisão.
O fato de ser um nobre, diferentemente da maioria das pessoas cumprindo penas na instituição, é um fator de constante tensão nas relações de Petrovich com os outros forçados – quase nunca refere-se às pessoas que cumprem penas ali como presos -, do início ao final de sua pena. Se, por um lado, os forçados ressentem e desprezam Petrovich por ser um senhor, por outro o próprio Petrovich também busca constantemente se diferenciar dos outros forçados, apontando para o fato de que não são seus iguais.
Mas o que, no início do livro, vai sendo narrado a partir de estereótipos muitas vezes rígidos e mesmo preconceituosos, evidenciando claramente a distância de classe entre Alexandre Petrovich e os outros forçados, com o tempo vai tomando contornos mais complexos. A convivência permite que ele não só o que o distancia dos outros, mas também o que os aproxima, além das nuances que, como nele mesmo, compõem as trajetórias e subjetividades de seus companheiros de prisão.
Durante todo o livro, as descrições explícitas e por vezes naturalizadas da violência dos castigos corporais aos quais eram submetidos os forçados dão o tom da experiência desses presos que, isolados e obrigados a trabalhos braçais, ainda veem-se diante do suplício como possibilidade e como realidade recorrente. Neste sentido, o incômodo que a leitura de tais passagens produz é um importante mobilizador.
Recordações da Casa dos Mortos é leitura indispensável, seja por sua assustadora atualidade para pensar o cárcere na contemporaneidade, seja porque evidencia, ao lado de Crime e Castigo, que Dostoiévski é, sem sombra de dúvida, um dos maiores autores de todos os tempos.

