Paulo Freire foi um importante nome da educação brasileira, reconhecido mundialmente pela sua contribuição à alfabetização de jovens e adultos. Além disso, seu trabalho na filosofia da educação, pautado na liberdade e na autonomia do sujeito educando, traz reflexões indispensáveis para a prática do professor no contexto brasileiro.
O livro A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam é uma coletânea de três conferências do educador brasileiro sobre o conceito de leitura, que, muito mais do que a decodificação e interpretação mecânicas, são formas de ler todo o mundo – o que acontece muito antes da alfabetização de um sujeito. São reflexões essenciais para educadores na busca por um ensino mais democrático:
A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente.
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros – o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; as águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos.
[o ato de ler] não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo.
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores – das rosas, dos jasmins -, no corpo das árvores, na casca dos frutos.
Os meus temores noturnos terminaram por me aguçar, manhãs abertas, a percepção de um sem-número de ruídos que se perdiam na claridade e na algazarra dos dias e que eram misteriosamente sublinhados no silêncio fundo das noites. Na medida, porém, em que me fui tomando íntimo do meu mundo, em que melhor o percebia e o entendia na “leitura” que dele ia fazendo, os meus temores iam diminuindo.
[Com minha primeira professora] a leitura da palavra, da frase, da sentença, jamais significou uma ruptura com a “leitura” do mundo. Com ela, a leitura da palavra foi a leitura da “palavramundo”.
A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.
[…] enquanto ato de conhecimento e ato criador, o processo da alfabetização tem, no alfabetizando, o seu sujeito. O fato de ele necessitar da ajuda do educador, como ocorre em qualquer relação pedagógica, não significa dever a ajuda do educador anular a sua criatividade e a sua responsabilidade na construção de sua linguagem escrita e na leitura desta linguagem.
Sempre vi a alfabetização de adultos como um ato político e um ato de conhecimento, por isso mesmo, como um ato criador.
Este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescreve-lo”, quer dizer, de transformá -lo através de nossa prática consciente.
[…] tanto no caso do processo educativo quanto no do ato político, uma das questões fundamentais seja a clareza em torno de a favor de quem e do quê, portanto contra quem e contra o quê, fazemos a educação e de a favor de quem e do quê, portanto contra quem e contra o quê, desenvolvemos a atividade política. Quanto mais ganhamos esta clareza através da prática, tanto mais percebemos a impossibilidade de separar o inseparável: a educação da política. Entendemos então, facilmente, não ser possível pensar, sequer, a educação, sem que se esteja atento à questão do poder.
As relações entre a educação enquanto subsistema e o sistema maior são relações dinâmicas, contraditórias e não mecânicas. A educação reproduz a ideologia dominante, é certo, mas não faz apenas isto. Nem mesmo em sociedades altamente modernizadas, com classes dominantes realmente competentes e conscientes do papel da educação, ela é apenas reprodutora da ideologia daquelas classes.
Nem sempre, infelizmente, muitos de nós, educadoras e educadores que proclamamos uma opção democrática, temos uma prática em coerência com o nosso discurso avançado. Daí que o nosso discurso, incoerente com a nossa prática, vire puro palavreado. Daí que, muitas vezes, as nossas palavras “inflamadas”, porém contraditadas por nossa prática autoritária, entrem por um ouvido e saiam pelo outro – os ouvidos das massas populares, cansadas, neste país, do descaso e do desrespeito com que há quatrocentos e oitenta anos vêm sendo tratadas pelo arbítrio e pela arrogância dos poderosos.
Cada um de nós é um ser no mundo, com o mundo e com os outros. Viver ou encarnar esta constatação evidente, enquanto educador ou educadora, significa reconhecer nos outros – não importa se alfabetizandos ou participantes de cursos universitários; se alunos de escolas do primeiro grau ou se membros de uma assembléia popular – o direito de dizer a sua palavra.
Temos de respeitar os níveis de compreensão que os educandos – não importa quem sejam – estão tendo de sua própria realidade. Impor a eles a nossa compreensão em nome de sua libertação é aceitar soluções autoritárias como caminhos de liberdade.
Só educadoras e educadores autoritários negam a solidariedade entre o ato de educar e o ato de serem educados pelos educandos; só eles separam o ato de ensinar do de aprender, de tal modo que ensina quem se supõe sabendo e aprende quem é tido como quem nada sabe.
Leitura do mundo e a leitura da palavra estão dinamicamente juntas. O comando da leitura e da escrita se dá a partir de palavras e de temas significativos à experiência comum dos alfabetizandos e não de palavras e de temas apenas ligados à experiência do educador.
A alfabetização de adultos enquanto ato político e ato de conhecimento, comprometida com o processo de aprendizagem da escrita e da feitura da palavra, simultaneamente com a “leitura” e a “reescrita” da realidade, e a pós-alfabetização, enquanto continuidade aprofundada do mesmo ato de conhecimento iniciado na alfabetização, de um lado, são expressões da reconstrução nacional em marcha; de outro, práticas a impulsionadoras da reconstrução.
Referência: FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. 51 ed. São Paulo: Cortez, 2011.
Imagem: Painel de Luiz Carlos Cappellano / Reprodução.