Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
João Cabral de Melo Neto – A Educação Pela Pedra
Um dos maiores armadilhas quando se pensa em literatura está a ideia de que uma obra esconde um enigma; de que, no interior dela, há algo a ser desvendado, desencoberto, como se um livro fosse, no fim das contas, uma matéria escura, escondida no interior das entrelinhas da palavra. É por isso que, muitas vezes, ao lermos uma obra, percebemos de forma negativa quando ela nos escapa, quando ela nos sai dos eixos da estabilidade. Osman Lins, me parece, trata a materialidade da palavra como se fincasse raízes, como se encravasse na terra cada palavra e impedisse, assim, que este “fora da literatura” se impusesse por sobre sua própria estrutura. Não é a toa que a obra que falamos aqui se chama o Fiel e a Pedra.
O Fiel e a Pedra, de Osman Lins, conta a história de Benardo, um homem cuja retidão moral, senso justiça e posições éticas intransigentes, inegociáveis, sejam em quaisquer as circunstâncias, delimitam um limite extremo em sua vida. O problema é que, ao seu lado, está Teresa, sua esposa, que se vê diante da morte do primeiro filho um pouco por doença, um pouco por fome, após Bernardo demitir-se de um trabalho em que se cometiam ilegalidades. Em um primeiro instante, ao que parece, a vida de Bernardo começa a se transformar quando é chamado por um comerciante local para cuidar de uma fazenda, fato que dura pouco, pois após a morte deste comerciante, seu irmão, o impassível Nestor, resolve fazer com que Bernardo ponha-se ao seu lugar, atentando contra sua vida e contra os poucos bens que ele havia reunido. Junto de Bernardo, um amigo/empregado, Antônio Chá forma um elo de afeto entre aqueles que mais precisam e menos têm. Ao fim, agora com a esposa grávida novamente, Bernardo precisa encarar uma luta em busca de sua própria sobrevivência. Será que Nestor e seus capangas conseguem lhe tirar a vida?
Este Bernardo, tal como a matéria do livro de Osman, pode ser visto como esta pedra: esta matéria dura, silenciosa, sem movimento, que se pode ser deslocada pela força de um corpo. Que permanece onde está por natureza, não por necessidade, muitas vezes tampouco por querência. Esta figura de Osman pode ser vista tal como João Cabral de Melo Neto tratou em Educação Pela Pedra. Dizia ele que a pedra possuía uma espécie de cartilha em que se é, ao mesmo tempo, rígido e maleável. Um tempo que, lento, amolece a rigidez. Um tempo que demanda uma transformação pelo outro. Uma dureza diante da violência e uma fragilidade diante do tempo. Diz o poema:
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
E, ao que parece, a cartilha da pedra, na obra, é perpassada: Teresa, a esposa fiel, que fica ao lado dele não importam as intempéries, torna-se também pedra. Ela entende pela bondade rígida do marido que, muitas vezes, só se pode viver a partir disso: uma concretude de carne que se estabelece e permanece exceto diante do gesto do outro. O mesmo se pode dizer de Antônio Chá, o amigo colérico de Bernardo que, aos poucos, encontra em Bernardo seu lado de fiel e de pedra. É que a pedra, como didática, adensa-se, como diz João Cabral, de “fora para dentro” como cartilha muda”.
A obra, que no final possui características (para não deixar a cultura pop de lado) tarantinescas, – a que fatalmente se inspira na aridez do sul dos Estados Unidos, cujas semelhanças com nosso sertão são imensas – é uma espécie de geografia da terra, uma biologia social, tal como faz Euclides no seu capítulo A Terra de Os Sertões.
Com uma literatura de viço e de voz, Osman Lins é uma das literaturas mais intensas da literatura brasileira. Pena que fique, como as melhores obras de nosso país, fora dos grandes manuais literários.