Editora: Chiado
Ano: 2018
Páginas: 360
-Você não acha que eu já estou mudando o mundo?
Otávio Bravo
A memória é sempre um comum, um traço coletivo diante de uma subjetividade. Desde as reflexões de Maurice Halbwachs, no começo do século XX, ao afirmar que “toda memória é coletiva”, passando por toda a filosofia pós-moderna, de Giiles Deleuze, Félix, Guatarri e Jacques Derrida, que encarava a subjetividade como um rizoma, ou seja, como algo que sai do uno para o múltiplo, que não o relato de memórias não pode mais ser visto como individual, particular, limitado às experiências pessoais ou, simplesmente, a vivência de um sujeito. Ao contrário, toda memória é testemunho, relato vivo de um tempo, fotografia móvel de uma e muitas histórias e, por conseguinte, uma semente no bojo da História (com H maiúsculo), um sintoma ou reflexo de um tempo. Neste sentido, pelo menos creio eu, a memória é ao mesmo tempo, tradição e resistência, força e força, uma possibilidade de, diante da vida, (re)apresentar e reorganizar o mundo diante dele próprio e apontar caminhos, traçar rotas, redefinir vidas. E creio que esta é a maior potência da obra de Otávio Bravo. Vamos à sinopse.
Travessuras de Minha Meniná Má – Livro I, de Otávio Bravo, é um romance livremente inspirado no romance quase homônimo de Mario Vargas Llosa: Travessuras da Menina Má. Entretanto, neste primeiro volume, a tal menina ainda não aparece. O livro I de Bravo conta a história de Victor, um rapaz grande, tímido e desengonçado, filho de imigrante inglês – veterano de guerra – com uma brasileira. A história se passa na infância e adolescência de Victor, principalmente na década de 80 de um Rio de Janeiro efervescente com o fim da ditadura militar e abertura política, acompanhando seu grupo de amigos que viviam pelas praias da zona sul carioca, além dos reflexos de uma cidade que começava a reconhecer suas próprias desigualdades sociais, raciais e políticas. Ao lado de Victor, sempre, Caíque, seu irmão e maior ídolo, de rara beleza, carisma e simpatia, que arrastava o irmão introspectivo pela cidade para viver as primeiras experiências de uma vida adulta. O livro conta também relacionamento de Victor com Marcella, desde o começo, passando pelo nascimento de sua filha Clarinha, assim como de sua vida profissional na Inglaterra como estudioso da Idade Média e cultura árabe, inspiração do pensador Jacques Le Goff.
A desvantagem da vida, que era não fazer parada, era simultânea vantagem, e o tempo amainava até o mais insopitável dos acontecimentos. Da mesma forma que não se podia gozar eternamente os regalos da existência, também não permaneciam para sempre as dores do infortúnio.
O que mais se destaca no livro, a meu ver, é que toda a narrativa de Victor, minuciosa e atenta em cada descrição de lugar, apontando ruas, vias, espaços, nomes antigos e novos, espaços habitados que outrora eram desabitados, formula, ao mesmo tempo, uma cartografia espacial e temporal de lugares físicos marcados por corpos em trânsito, além de uma espécie de memória afetiva coletiva que ultrapassa o próprio nível narrativo, engendrando uma espécie de relato de um tempo. No campo afetivo, o passeio pela vida de Victor, nos dá um toque de nostalgia da mesma forma que nos projeta, em nós próprios, o nosso próprio passado, como se a história da personagem fosse um pouco a nossa, ou um desdobramento dela ou, até quem sabe, o relato coletivo de uma vida que poderia ser muitas. E que, em certo sentido, é. Por outro lado, o fato de, via linguagem, este corpo se materializar em um tempo e um espaço, pela habilidosa escrita de Otávio Bravo, temos a todo instante a impressão de que estamos diante de um diário ou de uma biografia, mas uma biografia cuja eficácia se dá a partir do que ela tem de coletiva e se desdobra em nós.
Pois, no curso da existência humana, há perdas inevitáveis, daquelas que despedaçam. São as mais terríveis nas quais não há ganho ou escolha – é preciso aceitá-las e seguir em frente. A vida – eu ainda não sabia – me reservaria algumas em futuro não tão distante.
Por exemplo, a cada percalço na vida de Victor, a cada perda que ele precisou e precisava ultrapassar, tínhamos a dimensão não do sofrimento de uma figura, mas de uma espécie de página da vida que era dobrada, atravessada, refletida, como se, de alguma forma, um narrador tal como a morte de As Intermitências da Morte, de José Saramago, estivesse assinalando os gestos presentes, passados e vindouros dessas figuras. Assim, a escrita, enquanto linguagem, se atualizava em seu próprio tempo e o sofrimento não caía na esparrela de virar uma questão de conteúdo – alguém que sofre por algo – mas de uma linguagem que lança em sofrimento a si própria, como se o livro precisasse chorar também, tal como o abismo nietzschiano. Neste sentido, a memória ou o texto memorialista deixa de estar no passado, mas atualizado em cada linha, mesmo que ele, em alguns momentos, entre em conflito consigo próprio.
Apenas como tergiversão, percebo o fato de Victor ter estudado o período da Idade Média, tentando desconstruir a ideia de que viveu uma “idade das trevas” pode ser visto, quem sabe, como uma imagem quase alegórica do que tento dizer: o passado é trevas no momento em que é sepultado, quando visto como potência, ou seja, como energia criadora, que possibilita uma reatulização da memória em experiência, ele é pulsão, eros, enfim, é um apontamento do passado que ajuda o presente a empurra nosso tempo para frente.
Otávio Bravo, em Travessuras de Minha Menina Má – Livro I, batalha com a linguagem. Diante de seu próprio passado? Em um exercício de imaginação da linguagem ou de invenção de um espaço vivo, porém imaginado? A impressão que se tem é que é tudo isso e, embora a sua menina má não apareça ainda, seu espaço já foi criado. A menina má, seja a de Vargas Llosa, seja de Otávio Bravo, merece uma figura de fortes cores e intensidades ímpares e somente um passado tão profícuo e que se alastra para tantos lugares poderia servir como cama para o próximo volume da obra. O que esperar da menina má, perto deste menino-homem que, em tão pouco tempo, tanto teve de passar?