Alceu Valença destaca-se como um dos nomes mais expressivos da música popular brasileira. Nasceu no interior de Pernambuco e formou-se em Direito em Recife. Participou de diversos festivais na década de 70 e, nos anos subsequentes, com canções influenciadas pela cultura e pela música do agreste e do sertão, consolidou sua carreira artística. Com mais de 40 anos de carreira e mais de 35 discos lançados, continua a inovar. Em 2014, produziu e dirigiu seu primeiro filme denominado A luneta do tempo. E, em 2015, lançou, simultaneamente no Brasil e em Portugal, pela Chiado Editora, a obra O poeta da madrugada. O livro reúne poemas escritos entre os anos de 1960 a 2014. Muitos deles são bastante conhecidos como canções na voz do próprio artista.
Acredito que mesmo quem nunca ouviu Alceu cantar, quem não o conheça enquanto cantor, rapidamente se aperceberá de que estes são versos nascidos para a música. Ou melhor: são versos que trazem consigo a música, uma melodia interna, que permanece em nós, que continua reverberando em nós, mesmo depois que nos afastamos deles.
Prefácio por José Eduardo Agualusa
Confira alguns poemas:
O Tempo
O tempo se dilata
Como um fio,
Cordão elástico caminho,
Estrada que nos transporta.
A gente segue o tempo e ninguém nota,
Seus caminhos suas rotas
Por onde o tempo seguiu.
Depois quer viver tudo que viu,
Vai bater na mesma porta
De onde um dia saiu.
Poeta Noturno
Eu mato o tempo fingindo fazer versos filosóficos
Cheio de dúvidas que povoam minha alma,
Mas sigo o caminho tortuoso dos que vestem calma
Ou se fantasiam de atormentados fantasmas
E escrevem quadras que não dizem nada
A não ser o que já foi dito ou reeditado.
Um passatempo, jogo bobo de dados
Ou um velho baralho de cartas marcadas.
Senhora Estrada
Aonde é que tu vais, senhora estrada,
Companheira fiel do meu destino
E do tempo que corre em disparada
Sobre ti e teu solo agrestino?
Onde é que vamos fazer parada?
Pois o sol está quente quase a pino.
Vou deixar o meu tempo de menino
Qualquer dia retorno para casa.
Sob a lua, vamos nós na madrugada,
Sob um sol causticante e cristalino.
Solidão
A solidão é fera, a solidão devora,
É amiga das horas, prima irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos,
Causando um descompasso no meu coração.
A solidão dos Astros, a solidão da lua,
A solidão da noite, a solidão da rua.
O Poeta
O poeta não cresce, permanece imaturo,
Palhaço que mendiga riso e aplauso,
Sofrido, doído bem mais que inseguro,
Tristonho, carente, malandro e otário.
O poeta é sombrio, sozinho, noturno,
Um guará, um morcego, uma coruja.
Vive em dias castigados pela chuva,
A fazer versos tristes e encharcados.
O poeta vê seu verso atropelado
Pela rima, pelo som, pelo fonema.
Por e-mails, mensagens, telefonemas,
Por alguém que já pertence ao passado.
O poeta usa dor em seus poemas,
Sobretudo nas frias madrugadas.
Entre copos, garrafas e tragadas,
Ele chora para a amada sentir pena.
Quem sabe esse ser angustiado
Seja fruto de pesadas lembranças
Vida, traumas, desejos, inseguranças
Escondidas em gavetas do passado?
Anunciação
Na bruma leve das paixões que vêm de dentro
Tu vens chegando pra brincar no meu quintal
No teu cavalo, peito nu, cabelo ao vento
E o sol quarando nossas roupas no varal
A voz do anjo sussurrou no meu ouvido
E eu não duvido já escuto os teus sinais
Que tu virias numa manhã de domingo
Eu te anuncio nos sinos das catedrais
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Amor que fica
Fica o dito e não dito,
Fica o dedo e fica o dado
Fica o feito e o desfeito,
O carinho e o cuidado.
Fica a chama, fica a vela,
Fica a casa e fica a rua,
A toalha na janela,
Linda, caminhavas nua.
Amor que fica é amor que fica!
Fica a cama, fica o quarto,
Um retrato e uma figa,
Duas mãos e não mais quatro,
Duas vidas divididas.
Embolada do Tempo
Eu marco o tempo
Na base da embolada,
Da rima bem ritmada,
Do pandeiro e do ganzá.
O tempo em si
Não tem fim, não tem começo,
Mesmo pensado ao avesso
Não se pode mensurar.
Buraco negro,
A existência do nada,
Noves fora, nada, nada,
Por isso nos causa medo.
Tempo é segredo,
Senhor de rugas e marcas
E das horas abstratas
Quando paro pra pensar.
Você quer parar o tempo
E o tempo não tem parada.
Flor de Tangerina
Ontem eu sonhei que ela voltava
E vinha muito mais que linda.
À meia luz me afagava
Cheirando a flor de tangerina.
Eu lhe amava e mergulhava
No seu olhar de azul-piscina
E docemente me afogava
Em suas águas cristalinas.
Depois sonhei que ela voltava
E dessa vez bem mais que linda.
À meia luz me afagava
E sua pele era tão fina.
Quando acordei meu bem chegava.
Não sei se ela me quer ainda…
Chegar assim de madrugada,
Desconfiada e meio tímida…
Mensageira dos Anjos
A mensageira dos anjos
Com seu cabelo lilás
Aperreava os demônios
Que habitam as catedrais
Do meu peito de menino.
A deusa mãe da preguiça
Falava tão devagar
Era o sussurro da brisa
Era o balanço do mar.
Como uma estrela cadente
Entrou na minha morada
Bebeu de minha saliva
Saiu e não disse nada.
E eu fiquei sem demônios,
Um anjo torto marcado
No céu da boca, no peito
No meu corpo tatuado.
Escute a música Solidão:
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