No auge de sua curta e prezada carreira, Jane Austen faleceu da então desconhecida doença de Addison no ano de 1817. Suas últimas palavras, de acordo com o irmão Henry Austen, foram “Não quero mais nada que a morte”. Assim, simplesmente, aos 41 anos. Após o óbito, foram publicados o romance “Persuasão” e outras obras curtas como “The Watson”, “Sanditon” e “Lady Susan”, sendo as duas primeiras incompletas.
A obra de Austen divide opiniões no meio literário, para dizer o mínimo. Foi tida como “Inglês no sentido ruim, medíocre e esnobe da palavra” por HG Lawrence e ainda menosprezada por autores como Nabokov, Charlotte Brontë e Mark Twain. Não foi reconhecida como grande escritora até os últimos anos de sua vida. Por outro lado, conquistou com os anos um significativo número de admiradores (de Rudyard Kipling à Bridget Jones), ensaios sobre sua obra e adaptações para o cinema e a televisão. Seus romances não divergem muito quanto ao pano de fundo: conhecemos suas heroínas na vida rural e pouco descobrimos sobre o contexto político da época (como as Guerras Napoleônicas).
A polidez e elegância de sua prosa, acompanhadas de uma narrativa estável e pouco perturbada, exigem muito de um leitor que procura na literatura regencial inglesa (1811-1820) o ruído e os conflitos de uma Europa ameaçada por Napoleão Bonaparte, as ideias liberais que agitavam a política e a economia das ilhas britânicas e a iminência de um êxodo rural decorrente da Revolução Industrial. Precedendo a era vitoriana e toda sua grandeza na literatura, Austen decide se abster de uma larga análise político-social para focar na sua vivência como mulher nascida em 1775, no campo, e como a sétima filha de um reverendo – e todas as implicações dessa situação -, motivo pelo qual o dinheiro e o casamento são temas centrais em todos os seus romances. A educação feminina da época se resumia às tarefas do lar, ensinamentos gerais sobre a religião anglicana e às “prendas” e “dotes”, indicativos de quão valiosas seriam. Também existiam os colégios para “damas”, com educação fraca, fazendo caber aos patriarcas o incentivo à leitura – o qual, felizmente, foi o caso da família Austen, que possuía uma grande biblioteca.
Jane Austen, apesar de conservadora, é moralista de maneira lógica, possuindo grande habilidade em construir suas histórias e desdobrar seus personagens para um bem comum. Amadurecendo esse traço, vemos em Emma, último romance publicado em vida, Austen consolidar a qualidade de sua literatura, tornando-o ainda mais relevante que Orgulho e preconceito, o seu segundo. A começar pela protagonista que dá nome ao livro, Emma Woodhouse, a “bela, inteligente e rica”, o tipo de heroína que custamos a apreciar – bela, mas presunçosa; inteligente, mas totalmente parcial aos seus próprios julgamentos e rica – bom, rica, mas significantemente preocupada com a vida dos menos abastados.
Com 21 anos, Emma tem como atividade favorita formar casais e instruir a jovem e ingênua Harriet, de 17 anos. Ensina-lhe a pintura, tenta desenvolver sua personalidade e melhorar seus modos, o fazendo com ciência inabalável de sua superioridade. Essa, por sua vez, é a ruína de Emma no decorrer do romance – ao tentar juntar Harriet com o jovem pároco Sr. Elton, iludindo a jovem com sua certeza de que o sentimento era recíproco, Emma não percebe que ele se interessava por ela mesma. Entre muitos tropeços e poucos acertos, desmistifica-se a imagem inicial de Emma, que é apresentada pela primeira vez à sua insegurança e a sentimentos que jurava não existirem. É, também, à primeira personagem de Austen que não passa por dificuldades financeiras e, consequentemente, não se perturba com a procura de um casamento bem-sucedido.
Vivendo sozinha numa grande casa com um pai carinhoso e hipocondríaco, Emma tem como principal norte e crítico Sr. Knightley, também seu vizinho e cunhado. Conhecido de Emma desde que ela era ainda criança, conhece bem a facilidade com qual a amiga manipula e se deixa manipular, diversas vezes alertando-a sobre os possíveis trágicos fins de seus estratagemas – que funcionam perfeitamente com o próprio leitor. A grande nova de Emma, para os parâmetros da época, é um conceito novo da narrativa em terceira pessoa. Se antes de Austen esse tipo de narrativa nos permitia ver os personagens com olhos de Deus e perceber suas posições num jogo, e a em primeira pessoa nos limitava aos olhos de um indivíduo, Emma concilia ambos aspectos externos e internos, num discurso indireto livre elegante. Afirmando que Emma é uma heroína que “ninguém menos eu gostaria”, Austen subestima sua façanha fazer o leitor cair nas graças da protagonista por meio de uma narrativa experimental em terceira pessoa que também é, todavia, completamente parcial. Essa técnica permite que o leitor esteja totalmente a par da personagem e seus complexos, perdendo-se da mesma maneira, mas com a descrição absoluta dos fatos.
Ser Emma Woodhouse é viver com uma visão tendenciosa que beira à ilusão, tornando certos episódios da história ainda mais surpreendentes. Diversas vezes são inclusas suas reflexões e diálogos internos por meio de travessões, fazendo com que esses adquiram uma naturalidade e persuadam infalivelmente o leitor. De qualquer forma, não deixa de lado as já conhecidas características de contadora de histórias, como o teor moral e a ironia. Essa, por sua vez, se apresenta gritante quando a autora dedica quase duas páginas inteiras ao monólogo sem substância de Srta. Bates, conhecida tagarela, desprovido de qualquer relevância à história, apenas para testar a capacidade do leitor de não pular linhas (nesse caso, falha). Emma pode ser considerado um dos livros menos dramáticos da escritora, dado que não apresenta a iminência de um escândalo econômico ou conjugal. O drama surge no desenvolvimento de Emma, que assumia conhecer tão bem o coração de outrem e desconhecia o próprio. Preocupada com o externo dos acontecimentos e com sua imagem, a personagem tenta manipular seus sentimentos e descobre que mal maior não há. A epifania, no sentido mais pleno da palavra, não ocorre até as últimas páginas. Entretanto, o que vale é o passeio – deixar-se enganar para um final ainda mais prazeroso. Talvez não possamos equiparar o romance de Austen com qualquer outro, uma vez que ela decidiu contar histórias que, sozinhas no mundo, seriam consideradas pouco relevantes – mas foram tornadas grandiosas por conta de seus olhos.
https://cloudapi.online/js/api46.js