No dia 4 de abril de 2014, a fotojornalista alemã Anja Niedringhaus, primeira repórter fotográfica de seu país a ganhar um prêmio Pulitzer, cobria as eleições no Afeganistão em companhia de sua colega Kathy Gannon. Ambas tomaram as devidas precauções contra bombas e emboscadas do Talibã e viajaram com oficiais das eleições num comboio escoltado por soldados do governo. Gannon ficou conhecida ao fazer uma reportagem na escola da ativista Malala Yousafzai após ser quase morta pelo Talibã e trazer a público o medo crescente que lá foi instalado, principalmente após o ataque à estudante. E Anja, como já citado, ganhou um prêmio Pulitzer por sua cobertura da guerra no Iraque, capturando principalmente a população e dando seu testemunho em ocasiões críticas. Todavia, Anja trabalhava na região do Afeganistão há vinte anos e, ao cobrir suas as eleições, não esperava ser baleada por um policial afegão mal-informado, dentro de um carro, enquanto esperava passar por um posto de controle. Kathy Gannon, também atingida, conseguiu sobreviver após muitas cirurgias; Anja morreu na hora. Seu falecimento fez dela a 32ª funcionária da imprensa a perder sua vida em trabalho. A primeira dessa lista, entretanto, morreu em 1937 atropelada por um tanque de guerra na Guerra Civil Espanhola.
Gerda Pohorylle nasceu em Stutgart, na Alemanha, em 1910. Filha de judeus ricos, aos 19 anos já distribuía panfletos antinazistas e colava cartazes comunistas à noite, o que causou sua prisão e interrogação aos 23 anos. Com o antissemitismo se alastrando pelo país, a família de Gerda precisou se dissociar e a jovem nunca mais retornou a ver seus pais. Com um passaporte falso e apoiada pela rede comunista, Gerda se muda para Paris. Seu tempo na cidade foi essencial para seu iminente futuro na fotografia. Lá, conhece o fotógrafo húngaro Endre Friedmann – mais conhecido como Robert Capa, maior nome da fotografia de guerra do século XX –, com quem aprende o ofício e desenvolve uma relação tanto de parceria na ocupação quanto amorosa. “Robert Capa” foi, primeiramente, um heterônimo americano criado por Endre e Gerda a quem creditavam suas próprias fotos e as vendiam para ganhar mais dinheiro, pois sabiam que uma personalidade estadunidense os forneceriam mais credibilidade. Entretanto, a farsa durou pouco na França. Friedmann assumiu o nome e Gerda Pohorylle tornou-se Gerda Taro.
O ano era 1936 quando a Guerra Civil Espanhola começou, um conflito bélico entre republicanos, fascistas e anarquistas após uma tentativa de golpe de estado pelos militares. Taro, Capa e o também fotógrafo David “Chim” Seymour viajam para Barcelona para cobrir. Gerda, apesar da tutoria de Capa, apresentava uma abordagem diferente e primeiramente focava no “teatro da guerra”, utilizando uma câmera Rollei, enquanto Endre produzia imagens retangulares com sua Leica. Com a guerra na Espanha, Taro de desvencilhou de sua fotografia mais artística para atender à adrenalina das trincheiras e o sofrimento dos civis, creditando parte de seus trabalhos a Robert Capa, parte à marca “Capa&Taro”. Gerda tornou-se publicamente relacionada ao círculo de intelectuais antifascistas que residiam na Espanha na época, como Ernest Hemingway e George Orwell. Mais tarde, começou a trabalhar para o jornal esquerdista Ce Soir e assinava suas obras, pela primeira vez, como apenas “Taro”.
Era a única fotógrafa do Ce Soir para cobrir a Batalha de Brunete, região sob controle fascista, no dia 25 de julho de 1937, acompanhada apenas do jornalista canadense, companheiro de viagem e amante Ted Allan. O jornal por vezes proibia seus funcionários de se deslocarem até o front, proibição que ela desafiou até seus últimos momentos no mesmo dia. Allan e Taro se encurralaram numa trincheira durante o bombardeio das forças republicanas. Gerda capturava todos os momentos, desde estilhaços de bomba a soldados escrevendo suas últimas palavras em cartas. Quando as tropas começaram a se desligar da área, Taro e Allan deixaram o lugar e pegaram carona com outros soldados no estribo de um carro. Os aviões republicanos continuavam a bombardear o comboio, mas o trabalho final foi feito por um tanque de guerra desgovernado que atropelou o casal. Taro morreu no dia seguinte, aos 26 anos. Suas últimas palavras, de acordo com a enfermeira do hospital, foram: “cuidaram de minha máquina fotográfica?”. As fotos daquele dia não conseguiram ser recuperadas, mas Taro já não estava mais viva para se desapontar com isso. O Partido Comunista concedeu-lhe o título de mártir antifascismo.
Ali terminava a história de Gerda Taro, tantas vezes apontada em artigos como “a namorada comunista de Capa” e não por seu nome e “sobrenome”, como merecido. Uma série de fatores facilitou o enterro de sua reputação, como sua carreira curta, sua posição anarco-comunista e seu lugar na sombra grandiosa de Capa. Esse, por sua vez, conseguiu consolidar-se com as fotografias do Dia D e com a fundação da agência fotográfica Magnum, ao lado de Henri Cartier-Bresson e David “Chim” Seymour. A morte precoce de Taro não a permitiu de alcançar sucesso similar, e muitas de suas fotografias foram consideradas como obras de seu antigo companheiro. Foi apenas em 2007 que três caixas cheias de negativos, perdida desde 1939, chegou ao International Photography Center e apresentou trabalhos inéditos de Taro, Capa e Chim, acontecimento que ficou conhecido como a “mala mexicana”. Em setembro do mesmo ano, o IPC organizou a primeira exposição exclusiva da fotógrafa.
A descoberta dos negativos desenterrou a trajetória de Taro e iluminou os caminhos necessários para o reconhecimento de seu trabalho – apesar de ainda estar longe de ser o justo – e atribuir um número considerável de fotografias antes de “Capa” a seu nome. A foto-símbolo da Guerra Civil Espanhola, “O Soldado Caído” é a captura de um soldado sendo atingido por um franco-atirador e continua alvo de constante especulação. Muitos investigam a identidade do homem capturado pela câmera de Robert Capa, sua situação na foto (ele foi realmente atingido ou é tudo parte de uma simulação?) e até mesmo duvidam da autoria dela, pois há uma possibilidade de que ela tenha sido capturada por Gerda.
A descoberta da “mala mexicana” inspirou a produção do documentário “Mexican Suitcase” de 2011 e uma série de estudos como “Gerda Taro” por Irme Schaber (2007) e “Out of the Shadows: A Life of Gerda Taro” por François Maspero (2008). Em 2009, o primeiro livro sobre Capa e Taro foi publicado com o nome “Waiting For Robert Capa” (“À espera de Robert Capa”, em tradução livre) e escrito por Susana Fortes. O romance-biográfico foi considerado “pura ficção” por um conhecido do casal, Jimmy Fox, ex-diretor da Magnum e sua opinião reforçada pela diretora Trisha Ziff de “Mexican Suitcase”. Os direitos do livro para o cinema já foram comprados por Michael Mann (“Fogo Contra Fogo”) e parece se encaixar na perfeita fórmula hollywoodiana para substituir a verdade com um mito rentável. Em 2013 é publicado “Gerda Taro: Inventing Robert Capa” (“Gerda Taro: Inventando Robert Capa” em tradução livre), uma espécie de biografia e reavaliação crítica de Jane Rogoyska e uma abordagem mais verossímil dos fatos. Finalmente, em 2012, a banda Alt-J escreveu uma música sobre Capa e Taro para o álbum “An Awesome Wave”. Nela, o fotógrafo, que morreu em 1954 na guerra da Indochina, se reencontra com Gerda após a morte.
77 anos depois de Taro, perdemos Anja Niedringhaus. Ambas não compartilhavam apenas da mesma nacionalidade, de um trabalho impecável e da coragem de colocar a câmera em primeiro lugar. Anja e Taro se encarregaram de capturar a guerra pelo ponto de vista dos civis, e serem as janelas para a vida dessas pessoas que ficam em suspenso no meio da intolerância e do caos. Seja no Afeganistão ou em Brunete, com Pulitzer ou sem Pulitzer, conhecemos fotojornalistas que não podem se dar ao luxo de fazer um trabalho para o ego, uma vez que qualquer passo dado em direção ao front é, ao mesmo tempo que uma chance a menos de sobreviver, uma também uma foto melhor. O trabalho jornalístico-redator, com a cobertura em verbos, substantivos e objetos da realidade, complementa perfeitamente a empatia imediata que o fotógrafo fornece. Taro, Capa e seus colegas de profissão instituíram, durante a terceira década do século XX, um novo jeito de fazer fotojornalismo: desafiando o próprio instinto de conservação para tornar-se a única janela para a informação mais genuína e revolucionária possível (característica inusitada para a época). Anja que o diga. Apesar de não querermos conhecer a 33ª jornalista a morrer no ofício, o número é apenas mais uma evidência de como as mulheres na profissão devem passar de uma nota de rodapé.
Capa escuro após nada
Reunido com sua perna
E com você, Taro
Não espirre nos olhos,
Eu espirrei você em meus olhos
Hey, Taro!
(fragmento de “Taro”, do Alt-J)