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Uma discussão trazida pelo gênero cyberpunk – e mais que as distopias ou ficções científicas “tradicionais” – é a de que o progresso tecnológico não necessariamente melhora a qualidade de vida humana. Não por conta de um governo totalitário capaz de observar a tudo e todos a cada segundo do dia, ou por casas que não pegam fogo e que possibilitam a queimada e perseguição de livros: mas simplesmente porque qualidade de vida não significa necessariamente não passar fome, não ter dinheiro ou viver em lugares insalubres. Essa qualidade de vida que trago aqui vai para muito além desses fatores básicos de vida e sobrevivência, apontam uma relação direta com o nosso grau civilizatório e nosso reconhecimento próprio como humanos. Viktor Frankl já nos mostrara uma vez que era possível mesmo que em ambientes hostis como Auschwitz se notarem vidas que se enchem de sentido e vão na contramão do que é de se esperar.
Em Blade Runner 2049 a fome está erradicada, policiais como K. têm uma casa que, apesar de pequena, possuem um chuveiro que envia água 99,9% esterilizada para o banho. Ele pode comer, está quase sempre limpo e sem riscos de contrair doenças graves, mas, ainda assim, será que é possível afirmar que há qualidade de vida? Durante todo o desenvolvimento do longa é perceptível uma tentativa de aproximação de androides (ou replicantes) com as características humanas – resquício de uma questão muito bem apresentada pelo primeiro filme. Eles, os replicantes, apesar de serem máquinas, possuem sentimentos e certo grau de consciência – mesmo sendo programados para apenas seguirem ordens.
E, muito por isso, a cada momento em que se desenvolvia o enredo do filme, eu era jogado em um constante embate interno para me lembrar que K. era um androide e não um homem. Porém, foi exatamente esse embate que me instigou uma reflexão que segue à contramão por conectar esse significado diretamente com a realidade atual: não é que possivelmente robôs serão tão desenvolvidos que se encontrarão a par da capacidade humana, mas que nós, hoje, estamos vivendo uma vida artificial tal como máquinas. No entanto, leitor, quando digo isso, não afirmo para reforçar uma visão clichê e cada vez mais estereotipada de “sociedade produzida para meio de produção”, mas uma sociedade cada vez mais imersa em relações artificiais e superficiais, na qual androides conseguem ser “mais humanos que humanos”, tal como é afirmado pelos longas.
Pelo filme mal apresentar um núcleo que seja, de fato, humano, fica difícil afirmar categoricamente qual a visão da humanidade (em carne e osso) o diretor do longa gostaria de passar – a não ser por uma ótica a partir dos replicantes –, no entanto, ao trazer a discussão da nossa humanidade mergulhada nessa artificialidade, conseguimos perceber algumas semelhanças, ou avisos. O personagem de Ryan Gosling, K, que em boa parte da história acreditamos ser a criança nascida de replicantes – o milagre, que será abordado mais para o final do texto –, possui uma relação amorosa com um holograma, o que me lembra muito o filme Her (de Spyke Jonze). No entanto, essa relação de amor – que provoca uma das cenas mais tocantes do longa, na qual a holograma contrata uma prostituta para que pudesse “ser real para ele pelo menos uma vez” e sincronizar-se ao corpo dela – cai por terra logo após a cena findar: Denis Villeneuve, de maneira genial, faz questão de nos lembrar que ela é apenas um programa e que está ali para “ser o que você quiser”.
E, por incrível que pareça, é exatamente essa relação de “ser (no caso ter) o que se quer” que cada vez mais salta aos olhos na atualidade. Não é só o velho texto de Facebook que diz que nossos avós ao quebrarem um vaso, tão logo o colavam, enquanto nós jogamos fora simplesmente porque não nos agrada ou não queremos nos dar ao esforço: o número de pessoas que têm suas famílias abaladas ou destruídas por conta de pornografia, por exemplo, é cada vez maior. Recentemente me surpreendi ao ver um cara como o Terry Crews (Latrel ou Pai do Chris para quem preferir) fazendo um vídeo no qual apontava para essa problemática da pornografia; ou, ao saber de um documentário narrado pelo James Hetfield (Metallica), que aponta como cada vez mais essa noção de “ter o que eu quero na hora que eu quero”, inspirada por esses conteúdos adultos, não só destrói as famílias como também destrói as relações interpessoais, as nossas almas, a nossa humanidade. Hoje, tal como Joi, a namorada holográfica de K, nós, humanos, somos tratados como meros produtos a sermos consumidos pelos outros, todos jogados nesse meio que é capaz de misturar um niilismo com hedonismo.
Nessa nova obra de Villeneuve, um cavalo de madeira orgânica custa tanto quanto um cavalo real, ou uma passagem para as colônias “desenvolvidas”. No seu predecessor já percebíamos essa valorização – o que reforça a ideia de que essa organicidade (e capacidade de valoração) natural do ser humano é literalmente para eles, enquanto metaforicamente para nós: cara, de muito valor. Toda essa questão, novamente, me faz lembrar o quão humanos estamos deixando de ser a cada momento em que as tecnologias não só se desenvolvem, mas nos engolem nesse confuso fluxo do contemporâneo. Contemporâneo arredio, que, quando afogados nele, tal como apontou uma vez Agamben, não conseguimos fixar nosso olhar sobre, o que dá mais força a afirmação de Chesterton na qual “cada época é salva por um punhado de homens que tem a coragem de não serem atuais”.
Entretanto, com menos divagações acerca do contemporâneo e retomando a mensagem de 2049 para nós, vale lembrar que, por exemplo, a Dr. Stelline parece ter mais pena dos replicantes que já levam uma vida “muito difícil” e mal se lembra das dificuldades humanas. Muito se pode justificar disso, se levarmos em conta que ela foi largada naquela cúpula aos oito anos de idade, afastada da civilização e do contato humano – tal como a própria fala dela, a visita de K, foi uma das mais interessantes e uma das poucas que ela já teve. Esse tipo de afastamento e isolamento social apenas a colocou num mundo defasado e imaginário no qual ela produzia memórias que seriam inseridas na mente de outros – e que, de forma alguma, poderiam ser reais. E, apesar de poder haver essa justificativa – que é falha pois pode também embasar o pensamento a seguir – , a comparação com o real é latente: muito se percebe de pessoas que defendem aborto pelo simples fato de uma criança nascer pobre ou doente – eugenia? – e espumam de ira ao verem um teste farmacêutico ser executado em animais, ou ao saber que uma formiga do oeste da Polinésia pode ser extinta daqui a vinte anos. A vida humana é desvalorizada cada vez mais a cada momento.
Já o personagem de Jared Leto, Niander Wallace, é alguém que também reflete o homem contemporâneo, isto é, quando não está imerso nesse admirável fluxo novo. Digo isso pois é notável que, não satisfeito em estar presente nessa volatilidade contemporânea, quer controlá-la: na sua brincadeira de deus, a personagem mostra que sua cegueira vai para além dos seus olhos: ao querer produzir bebês artificiais de maneira quase biológica para que atendam apenas uma única função, a que ele deseja, e falhar e se frustar tanto, percebe-se que, para o homem é de fato impossível ter controle sobre a vida.
A partir daí, é possível saltar e voltar para o “milagre”, que é um dos pontos-chave do filme e que não abordarei muito a fundo na trama para não soltar muitos detalhes – seria possível um texto só abordando as relações de natalidade, paternidade, vida, entre outras tantas, como tão bem já nos deu um breve gosto Franciso Razzo em uma postagem. Esse milagre, que já nos é apresentado no início pelo personagem de Dave Bautista, Sapper Morton, é a vida, o nascimento: não se trata simplesmente a união de dois cromossomos com metade do DNA de cada ser, mas o surgimento de uma vida completa em si, abordando uma dentre várias questões existenciais que já passaram pela humanidade. Aqui enfoco em uma possível contradição no artigo, que ao mostrar toda a história como um possível aviso para a nossa artificialização e ao tratar os replicantes como meros androides (e não tratá-los de modo mais humano): o filme utiliza desse artifício para nos mostrar que, mesmo em meio a um mundo totalmente programado, desenvolvido, mesmo que sem qualidade, o “milagre da vida” haverá de surgir, o que alimenta a esperança de um povo e dá sentido a vidas antes mergulhadas nessa atmosfera sufocante.
Dessa forma, Blade Runner 2049, para mim, vai além de filmes que querem apresentar a evolução das IAs ou retratar os perigos sociedades distópicas de maneira variada do que geralmente nos é trazido, dando uma boa revigorada para a ficção científica das telonas – e ao dizer isso deixo claro que não afirmo que filmes como Her ou Ex-Machina sejam ruins ou ultrapassados. No entanto, vejo que Villeneuve, ao trazer essa humanização para máquinas e quase nos suprir de humanidade, foi capaz de provocar uma reflexão que atinge, mexe e não só toca uma das feridas mais profundas dos nossos conflitos humanos e da nossa contemporaneidade.
“A realidade é aquilo que, quando você para de acreditar, não desaparece.”
(Philip K. Dick)
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