O terror em “Anatomia do Paraíso”, de Beatriz Bracher

Esse texto inicialmente teve seu foco numa compilação de momentos em que na recente obra de Bracher falasse sobre a morte. No decorrer do livro, muitas vezes me deparava com situações e comportamentos e (sim, vejam só) até sentimentos que me fizeram lembrar de outras obras aparentemente distantes. Distantes também na minha linha cronológica de leitura, porque não buscava essas obras para ler há, pelo menos, dois anos.

Ainda assim foi fácil identificar muitas semelhanças com o gênero do terror, fosse na caracterização dos personagens, fosse na construção do ambiente. Aqui a questão da dualidade num dos personagens de Bracher foi forte acima dos demais aspectos, além disso temos a “degradação humana” que é gerada, respectivamente em comparativo aos romances O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, e Frankenstein, de Mary Shelley.

Não é difícil encontrar um personagem na literatura em que esteve no nível mais baixo da moral e da ética. A degradação humana, em outras palavras, acompanha o sujeito literário nos mais diversos gêneros e estéticas, reproduzindo uma realidade da época, histórico-cultural, ou uma vontade própria do autor de expressar a natureza humana, ou os dois. Encontrar semelhanças entre as demonstrações do ser perverso pode nos ajudar a entender melhor essa natureza e suas raízes, qual seria o peso da sociedade no psicológico do homem, por exemplo, dentre outras causas e aspectos que se revelam no decorrer da investigação.

Para começar, percebemos a diferença do ser quando em conjunto, e do ser quando solitário; ou seja, do animal político já dizia Aristóteles, e do ser abstido de muita (ou qualquer) atenção e ação exterior. Ao lançarmos o olhar para o personagem Félix da obra em discussão, não encontramos de forma nítida tal aspecto dual do “particular versus social”, mas sim uma dupla personalidade. A questão é simples quando, numa leitura sem muitos aprofundamentos, é facilmente percebida uma dualidade na figura do rapaz:

(…) Ele é a vontade de transar com Jojô, brutalmente, de machucá-la para que sofra, que olhe para ele com o mesmo medo e malícia que viu nos olhos da menina sem nome, sem nada. Malícia? Era uma criança! Ele senta-se no chão e chora, era uma criança pequena. Recupera-se. Jojô não, já é uma adolescente, vai brincar e gostar do jogo (…) (BRACHER, 2ª ed., 2016, p. 231).

Bem como o trecho da página 225: “O sol já desce, mais de quatro horas. Ela andou por aqui, por ali; estava preocupada? Ou era só o amor? E agora eu, eu-monstro.” E a página seguinte, em que Félix oscila entre duas vontades, do que deveria ter feito com Maria Joana, irmã de 13 anos de Vanda, e do que não deveria ter feito. Ele repreende-se:

“Quem é esse idiota que fala uma cafajestice dessas? Que agarra Jojô tão entregue e querendo ouvir as belas palavras que eu tinha a lhe dizer, tantas, e ouve tamanha boçalidade. Não tenho palavras originais nem para ser idiota.” (BRACHER, 2ª ed., 2016, p. 226)

A dualidade é clara. A questão pode ficar um pouco complicada quando dispomos suas categorias (quase que de forma semiótica) em paralelo com bom versus ruim. Ainda assim, não é esta a dualidade de Félix, ele não demonstra qualquer concretização de índole boa, sequer minimamente dotada de valores morais ou qualquer remorso, talvez apenas um indício subjetivo do que ele desejaria, concluindo-se, portanto, que o mais apropriado para os dois opostos seria deixá-los em incógnito – mas que há, pelo menos, duas personalidades em oposição.




Quando discutimos uma personalidade dual na literatura, é mais que oportuno a gente dar atenção ao romance de Stevenson, O médico e o monstro. Dr. Jekyll é um reconhecido médico local, bom e carismático; Mr. Hyde é um homem grotesco e misantropo. Porém Jekyll e Hyde são o mesmo. Ele é o homem que esconde sua face mais obscura da sociedade e utiliza de uma poção a fim de expor este lado, assim saindo à noite para fazer suas atrocidades. A justificativa de Dr. Jekyll seria a própria poção, mas, como se sabe, tal líquido apenas puxava o oculto do ser – o rosto por trás da máscara. Nada de ruim seria criado, ou sua índole alterada, porque o homem já seria dessa forma. Então surge a pergunta: seria todo homem potencialmente ruim, necessitando apenas de um gatilho (ou poção) para que isso venha à tona?

A passagem do livro que vemos Félix contorcer-se no quarto (páginas 173 a 176) é o mesmo processo que Jekyll passa para transformar-se em Hyde. Não dá para acreditar que seja somente acaso ou coincidência. A pergunta que incide ao tratarmos nessa perspectiva é: o que seria o outro lado de Félix? Aparentemente Bracher responde a essa pergunta de maneira sutil, ao mostrar que Félix, sob diversas provações, não demonstra mesmo um lado bom.

Mas se por uma ótica vemos Félix sempre como um ser humano ruim, pedófilo e abusador, por outra somos atraídos – nem que seja apenas inicialmente – por seu lado intelectual nas inúmeras e cansadas análises do Paraíso Perdido (obra de John Milton, também presente no Frankenstein). O problema, ou a falta de atenção, está no fato do narrador conseguir mostrar um Félix em partes, que pode não ser taxado de bom ou ruim numa leitura rápida a princípio. E o perigo está aí: em sentir apego por identificação, carisma, ou qualquer que seja outra característica que escape ao leitor diante de tantas grotesquices vividas pelo personagem. Esse caso acontece se o leitor tiver uma ideia de mundo meio fodida, mas nem por isso devemos desmerecer o poder da narrativa “manipuladora”.

Com esse processo que o leitor sofre, mesmo que breve, de perceber que o Félix “garotão” e boêmio, é um depravado sem escrúpulos e atormentado (por si mesmo), podemos analogar com Victor Frankenstein. No início sentimos apego e podemos listar inúmeras qualidades do jovem médico Frankenstein, muito pelo caráter fantástico de suas pesquisas e a vontade de criar uma vida, tendo grandes influências alquimistas como Paracelso e Cornelius Agrippa. O tema é cativante. A percepção do leitor – ou melhor, o insight ­­– se dá quando sua criação é bem sucedida e Victor vê que aquilo não era o que esperava. É tomado por tamanha angústia e no desespero abandona sua criação.

A diferença entre os personagens é que Félix não possui um motivo para suas atitudes; na verdade, as ações de nenhum dos dois personagens se justificam. Não é certo dizer que Victor Frankenstein teve alguma razão em abandonar seu filho, mas em Félix não é causa, só consequência, que é o que vemos na história. Além disso, se por outro lado comparamos os isolamentos de Félix, Victor Frankenstein e sua Criação, vemos que estes dois últimos da obra de Shelley concebem um crescimento intelectual como descobrir o “fogo” da vida – o caso do jovem médico –, e um crescimento intelectual e espiritual como descobrir a ler, escrever e sobre artes em geral – o caso da Criatura – em condições muito precárias. Em Félix seu isolamento é egoísta e alonga-se por mais da metade das quatro partes (estações) do livro, “parindo” de sua cabeça (como Zeus e Lúcifer) “interpretações” do Paraíso Perdido sem diretriz própria alguma.

Vemos a sociedade corrompendo a Criatura, filho de Victor, um ser atormentado que nasce bom, mas diante da crueldade do mundo acaba cometendo assassinatos e chantageando o pai renegado para criar-lhe uma esposa que possa ter filhos e não mais viver sozinho, pois nenhuma pessoa seria capaz de amá-lo. Isso é diferente do que acontece em O médico e o monstro e em Anatomia do Paraíso, que nos é apresentado o homem corrupto por natureza – e neste último caso tratemos o homem como sexo e gênero masculino. Félix não se corrompe pela sociedade, embora esta seja corrupta, vemos que sua índole é de tal forma por pura natureza. Se nós inferimos uma mudança, esta seria para pior. São momentos os quais Vanda tenta corrigi-lo que comprovam:

— Não, está errado, você não fala o que aconteceu, você inventa, o tempo todo não para de inventar o que aconteceu. Não é que mente, inventa. (BRACHER, 2ª ed., 2016, p. 231).

Félix tenta justificar seus erros sempre, quando deveria assumir sua perversão sempre para, pelo menos, transmitir uma ideia de esperança – bem como Dr. Jekyll deveria ter assumido sua outra face. O erro está em tratar Félix ou Jekyll como duplo, pois assim dá vazão a justificativas para suas respectivas ações erradas. E vale ressaltar que não só a Félix, como também à irmã, Vanda assume o papel de tutora, mesmo com suas ações consideradas céticas ou frias.

É possível também – e mais fácil – estabelecer um paralelo entre Félix e todo o livro de John Milton, tendo personagens semelhantes a ele como Lúcifer e Adão, inclusive com o próprio autor. Até porque Félix compara-se constantemente, sendo comum a narrativa apresentar passagens do Paraíso Perdido lidas e refletidas por ele e em seguida embaralhadas com os acontecimentos de sua vida – de maneira forçada, ou natural? O Inferno de qualquer jeito seria para Félix a vida na terra, onde nunca poderia suprir seus desejos ou subjugá-los.

Sabendo de tudo isso, é claro que a morte acompanha Félix, com direito de até mesmo ele tentar fazê-la acontecer certo momento. Não só em Félix, mas também no livro todo percebemos o decesso de maneira muito óbvia. Para começar, Vanda trabalha como técnica de autópsia no IML. Passagens como a adolescente que comete suicídio mostra que se por um lado Félix foi covarde em, pela morte, poder vir a ter sua libertação, a adolescente é mais forte por tê-la – podemos dizer – consumado o ato. O caráter bom da morte vem neste sentido de libertação, embora talvez encontrássemos mais sentido na imagem feminina sem uma posição de fragilidade, pelo fato de que as razões de seu suicídio se deu pela traição do namorado com uma amiga. Através de uma conversa de Vanda e Risério, um funcionário do Instituto, podemos observar:

— Não sei se a morte é ruim. Ela é feia, mas fico pensando se é ruim. Claro que é boa para a ecologia do planeta, e a fila andar, haver a sucessão de indivíduos, é uma maneira eficiente de aperfeiçoamento da espécie. Em termos biológicos, a morte é essencial à vida. Vida e morte como movimentos, não uma coisa em si. Mas, em termos de sentimento, o que a gente sente? (BRACHER, 2ª ed., 2016, p. 198).

Portanto a própria morte teria um prisma dual, sendo ruim ao tratarmos como um ponto final, ou sendo boa se admitirmos que por ela haja uma libertação e consequentemente a possibilidade de um recomeço – de dar continuidade ao ciclo. Na página 53, Félix joga a culpa para Deus e Adão, é neles que reside o problema. E lendo sobre Milton: “(…) ambos, pai e filho devem se amaldiçoar, Félix sabe, o intui… Talvez seja só isso, nada tão grandioso como todo prenúncio de crise faz parecer.” E como acontece a Victor e sua Criatura, ambos entregam-se numa perseguição até o oceano ártico, com um fim: a morte.

Ceio que, depois de ler e reler a obra de Bracher para selecionar algo que considerasse importante o suficiente para ser discutido aqui, é quase impossível de não ultrapassar o limite da imparcialidade e estabelecer comparações pessoais – ainda porque essa análise aqui é de cunho comparativo –, até mesmo com o famigerado Félix. Sendo assim, ao correr as folhas, indo e voltando, buscando as passagens, tentando relembrar nomes, quem disse o quê, ou a ordem dos acontecimentos, não pude deixar de acreditar que Bracher disse, ironicamente, sobre meu texto:

Nossa mente supõe mais ordem e regularidade nas coisas do que elas de fato possuem. Como na natureza há muitas coisas singulares e cheias de disparidades, procuramos, e supomos encontrar, paralelismos, correspondências e relações que não existem. É preciso, pois, encarar os próprios fatos particulares e suas séries e ordens, renunciar às nossas intuições ou crenças e habituar-se ao trato direto das coisas. (BRACHER, 2ª ed., 2016, p. 195).



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