Autor: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras, 2016
Ninguém é uma pessoa se não for toda a humanidade.
O problema de toda e qualquer guerra é que ela não chega de uma vez. Ela demora e em suas demoras a guerra já começa a existir nas pessoas. E mesmo que ainda não se veja os soldados e as mortes em sua terra, já se vê as pessoas se protegendo dos amigos, se dividindo em territórios, separando itens pra sobrevivência e o pior, separando gente não pelo aquilo que são, mas por aquilo que, em uma guerra, podem trazer de bom ou de ruim. No volume II de sua série sobre a história de Moçambique, Mia Couto aponta para um começo de guerra, ou uma pré-guerra e, por isso, o livro grita por entre cada palavra um pedido de paz.
Sombras da Água – As Areias do Imperador 2 – é o segundo livro da trilogia lançada por Mia Couto em que o autor moçambicano faz um relato histórico da época em que seu país era governado por Ngungunyane, último dos líderes do Estado de Gaza, segundo maior império do continente comandado por um africano. Retratado no final do século XIX, o livro é narrado por Imani, uma menina local criada pela cultura da colônia portuguesa e pelo sargento Germano, degredado de seu país para o local. Uma história de deuses, lendas, guerras e armas. Uma história de um país dividido com pessoas tentando encantar o mundo ou, pelo menos, sobreviver.
O livro se inicia com Imani e sua família em um barco ao lado de seu amado Germano que sofrera um acidente no final da obra anterior. Gravemente ferido, Germano é levado até uma igreja onde começa a receber os primeiros cuidados. Ali pode experienciar com toda força a efervescência da guerra: o padre possui uma relação com uma espécie de bruxa ou mulher com poderes de cura e ritualísticos, o pátio da igreja deixa de se tornar um lugar de religião para um lugar político estratégico, afinal é importante, neste momento, acima de tudo sobreviver.
Como o país inteiro vive um conflito, a experiência do leitor é levada para os meandros desse conflito, ou seja, as tentativas das personagens de circularem a margem dele, andando pelo território como um campo minado: aqui pode, aqui não pode. O pai de Imani, por exemplo, descobre da morte de seu filho – que como toda família andava ao lado dos portugueses – e resolve enterra-lo dignamente em sua terra, mas é obrigado no trajeto a desistir: nesta terra sonâmbula, todo território é de água, afinal
O mundo é um rio. Nasce e morre todo o tempo.
Em relação ao casal Imani e Germano, neste volume eles são obrigados a se afastarem. Imani é solicitada por um dos líderes locais a fim de “evitar uma batalha” e ela se vai ficando longe de seu amado.Esta história de amor, no entanto, permanece permeada pelas classificações mais simplórias como raça, gênero, força, política e, evidentemente, a guerra, assim como a condição da mulher que não pode nem humanizar-se, nem não ser ninguém:
Não basta que andemos descalças. É preciso que os nossos pés pisem o chão até perderem a pele. Até que o sangue da terra circule nas nossas veias.
Uma características que se mantém da obra anterior é a alternância de capítulos entre a história de Imani, a partir de sua perspectiva e a troca de cartas entre Germano e seu superior, apresentando os meandros políticos – mas também subjetivos – da jornada de ambos.
Sombras da Água – As Areias do Imperador 2 é, sem dúvida, um dos melhores livros de 2016. Muito melhor que o primeiro volume da trama, nesta obra Mia Couto consegue equilibrar a história a ser narrada com sua perspectiva história sem que as personagens pareçam apenas seres largados pelo destino nestas terras. As dinâmicas parecem emergir e todas as pequenas histórias que circundam as “sombras da água” tornam o livro uma obra que merece destaque. Após a leitura, foi impossível não ficar ansioso pelo próximo volume.
Leia as melhores epígrafes da obra:
https://jornalnota.com.br/2016/12/19/as-18-melhores-epigrafes-de-sombras-da-agua-as-areias-do-imperador-ii-de-mia-couto/